O
que é o bolchevismo?
Introdução
Esta é uma pergunta difícil de ser respondida.
A questão é que há diversas interpretações sobre o que é o bolchevismo, muitas
das quais apresentam concepções distintas. Isso, no entanto, proporciona uma
complexidade e uma dificuldade em se compreender o que ele seja de fato. A
questão é que o bolchevismo nasce fundado em uma profunda confusão de seu
próprio mentor, e futuramente, por seus epígonos. Estes contribuíram para que se
generalizasse essa confusão sobre o seu real significado, até mesmo intelectuais
conceituados acabam manifestando uma concepção deturpada do que ele seja. Por
este motivo, este texto tem como objetivo fundamental discutir o que é o
bolchevismo.
Para isso buscaremos resgatar
o seu significado histórico, e assim, contribuir para que se inicie um processo
de superação das ilusões que giram em torno do que representou, o seu papel na
história humana e o que representa na atualidade. A clareza em torno de seu
significado pode proporcionar aos militantes revolucionários uma ferramenta
para que sua luta não perca de vista o objetivo fundamental da emancipação
humana, e que não deixe que as ilusões sejam uma barreira para leva-lo a caminhos
distintos deste.
Origem
do bolchevismo
A
origem do bolchevismo deve-se ao seu mentor e criador, Vladímir Ilitch Ulianov,
ou simplesmente Lénine ou Lênin como é mais conhecido. Lênin passou a ser
reconhecido por muitos como o “líder da revolução Russa de 1917”, experiência
esta que lhe rendeu a insígnia histórica de revolucionário e principal
responsável pela efetivação histórica do projeto de sociedade desenvolvida pelo
proletariado. Segundo ele próprio, na obra “Esquerdismo, Doença Infantil do
Comunismo”,“o bolchevismo, existe como corrente do pensamento político e como partido
político desde 1903”(LÊNIN, 1981, p.14).
A
origem, portanto, do bolchevismo remete a um projeto de Lênin de se criar um
partido de novo tipo, como ele costumava chamar. Esse projeto teve início no
final do século XVIII, quando Lênin, para fortalecer o seu projeto de criar um
grande partido, teve a ideia de elaborar um jornal que atingisse militantes da
social-democracia “de toda a Rússia”. O jornal batizado por ele como Iskra
seria uma ferramenta para reunir militantes e criar uma força para efetivar o
seu principal projeto. Assim, “tendo assegurado
a ajuda dos sociais-democratas e criado sólidos pontos de apoio parao futuro
jornal, Lénine partiu para o estrangeiro em julho de 1900” (IML, 1984, p. 74).
Lênin
buscou apoio em militantes social-democratas que residiam na Suíça, que era
onde viviam os membros do grupo Emancipação do Trabalho, tratando-se de P.
Axelrod, Plekhánov, Vera Zassúlitch, P. Axelrod, A. Potréssov, e Martov os
quais se reuniram em Corsier para discutir a proposta de elaboração do jornal. O grupo concordou com a
proposta de Lênin, e seriam co-redactores do mesmo. Contudo Plekhánov, que era
grande amigo de Lênin, temendo perder espaço concordou com a proposta desde que
“o jornal fosse publicado sob a sua direção e que todas as ligações com a
Rússia passassem através dele, na Suíça” (Idem, p. 75).Assim, trabalharam
juntos na elaboração do jornal.
Em Outubro de 1900 foi publicada em
panfleto separado a Declaração da Redacção do “Iskra, escrita por Lénine. Nela
sublinhava-se a premente necessidade da fundação de um partido revolucionário,
indissoluvelmente ligado ao movimento operário (Idem, p. 76).
O
primeiro número do jornal saiu dezembro de 1900. “O jornal trazia em epígrafe
as seguintes palavras, retiradas da resposta dos dezembristas e Púchkine: “Da
centelha acender-se-á a chama!””.
O Iskra ocupava-se de todas as
questões econômicas e políticas actuais, do movimento operário, da situação das
massas populares. O jornal começou a publicar-se num momento em que na Rússia
crescia o movimento revolucionário, em que nas ruas de Petersburgo, Moscovo,
Kíev, Kazán, Tomsk e outras cidades se realizavam grandes manifestações sob a
palavra de ordem de “abaixo a autocracia”!
A Rússia passava por um
momento de grande efervescência da luta operária. E foi diante deste contexto
que Lênin teve a audácia de propor a criação de um partido, que na sua
concepção teria o papel de guiar e dirigir a classe operária, contribuindo para
que esta efetivasse de fato a revolução. Mas qual era aparentemente o objetivo
de Lênin em criar um partido único na Rússia? Neste mesmo panfleto Lênin fez a
seguinte declaração:
O grande papel da classe operária
da Rússia e do partido: só organizado num partido revolucionário o proletariado
podia cumprir a tarefa imediata que lhe cabia – unir sob a sua bandeira todos
os elementos democráticos do país e derrubar a autocracia (Apud, Idem. pp.
76-77).
Contudo,
foi somente com o II Congresso do Partido Operário Social Democrata Russo, que
ocorreu entre julho e agosto de 1903, que o projeto de Lênin se efetivou.
A ordem de trabalhos do congresso
continha vinte questões, as mais importantes das quais eram o programa do
partido, a organização do partido (aprovação dos Estatuto do POSDR) a eleição
do Comité Central e da redacção do Órgão Central [...] o congresso decorreu
numa encarniçada luta dos iskristas consequentes, unidos em torno de Lénine,
contra os “economistas”, bundistas, centristas e iskristas inconsequentes,
“brandos”, partidários de Martov (Idem, p. 97).
Apesar das controvérsias
Lênin conseguiu neste Congresso aprovar o seu programa político, no qual
defendia a ideia de que “a luta pela ditadura do proletariado era colocada como
tarefa fundamental do partido da classe operária” (Idem, p. 98). Neste
congresso as opiniões dos militantes se dividiram basicamente em duas partes,
um grupo, a maioria, apresentou concordância com Lênin, e a outra parte, uma
minoria concordava com Martov, que discordava da proposta de Lênin de um
partido fechado e dirigido com um grupo de dirigentes profissionais. Para
Martov,
O proletariado não
devia lutar pelo poder enquanto não constituísse a maioria da população do
país. Por isso não necessitava de um partido combatente e revolucionário,
necessário para garantir a hegemonia da classe operária e a vitória da ditadura
do proletariado (Ibdem, pp. 100-101).
Finalmente
o grupo que se colocou ao lado de Lênin, denominado por eles de revolucionários
consequentes, que eram a maioria (em russo bolchinstvó), passaram a se
denominar bolcheviques, tendo Lênin em sua direção. O outro grupo, uma minoria
(em russo menchinstvó) passaram a ser denominados de mencheviques.
Bolchevismo
e marxismo
Bom, de forma sintética
podemos conhecer a origem do bolchevismo. Agora, é preciso aprofundar a análise
sobre o que é o bolchevismo, que é onde se encontra o maior problema da
história desta concepção. Vimos que o bolchevismo foi criado nos princípios
políticos e ideológicos de Lênin. Portanto, para compreender o que ele foi, o
que se tornou e as deformações que sofreu é necessário, primeiro compreender os
princípios que norteiam a sua existência, que só podem ser compreendidos a
partir do próprio pensamento de Lênin.
Lênin
(1981, p. 15) afirma que “o bolchevismo surgiu em 1903 fundamentado na mais
sólida base da teoria do marxismo”.Sendo o marxismo a referência para o
bolchevismo, é preciso, no entanto, entender o que é o marxismo. Com isso
podemos ter elementos suficientes para compreender o que é o bolchevismo.
Uma
obra que contribui sobremaneira para compreender o que é o marxismo é “Marxismo
e Filosofia” de Karl Korsch. Nesta obra o autor apresenta
um estudo rigoroso da história do marxismo, compreendendo que para isso era
necessário aplicar o materialismo histórico-dialético ao próprio marxismo. Com
este estudo Korsch percebeu que a história do marxismo percorreu três períodos
até a atualidade. Segundo ele,
A primeira começa por volta de 1843
(na história das ideias, com a Crítica da Filosofia do direito de Hegel) e
chega ao fim com a Revolução de 1848 (na história das ideias, com Manifesto
Comunista). A segunda se inicia com a sangrenta repressão ao proletariado
parisiense em junho de 1848, seguida pela liquidação de todas as organizações e
tendências emancipadores da classe operária, “numa época de atividade
industrial febril, de descalabro moral e de reação política” magistralmente descria
por Marx na Mensagem inaugural de 1864. Estenderemos sua duração até a virada
do século porque não se trata, aqui, da história do proletariado em geral, mas
da evolução interna da teoria de Marx em suas relações com a história do
proletariado e, por isso, deixamos de lado fases de menor importância (fundação
e declínio da Primeira Internacional; episódio da Comuna; confronto entre
lassallianos e marxistas; lei anti-socialista; sindicatos; fundação da Segunda
Internacional). A terceira vem dessa época aos nossos dias e se estende até o
futuro ainda indeterminado (KORSCH, 2008, pp. 37-38).
O
que Korsch conclui é que o marxismo, desde a sua origem, acompanha o movimento
revolucionário do proletariado, fazendo deste a sua expressão genuína e
autêntica. Por isso ele definir o marxismo como “expressão teórica da ação
revolucionária do proletariado” (KORSCH, 2008, p. 148). Este estudo de Korsch
foi fundamental para observar que durante a sua história o marxismo sofreu
diversas deformações. Isso provocou a emergência de um pseudomarxismo, ou seja,
concepções que dizem representar o marxismo, porém, fazem desaparecer os seus
princípios fundamentais, ou seja, o de ser expressão teórica do proletariado
revolucionário. Se isso acontece no entanto, não se trata mais de um marxismo e
sim de um falso marxismo.
Marx,
portanto, foi o primeiro a organizar teoricamente a luta travada pelo proletariado
contra os seus exploradores, como colocou Kosch (2008). Ele representa a fase
autêntica do marxismo, e por autêntico, entende-se por ser representante
teórico da luta revolucionária do proletariado. O seu principal objetivo era
descobrir como que a dinâmica da luta de classes no interior do capitalismo
poderia levar ao processo que desembocaria na transformação social e instituição
de uma sociedade pautada pelo autogoverno dos produtores (MARX, 1986).
Foi
por isso que dedicou boa parte de sua vida ao estudo do capitalismo, dando
origem a uma das suas mais importantes obras, O Capital.Ao demonstrar a transitoriedade do capitalismo Marx
encontrou no proletariado a força transformadora que colocará fim à sociedade
de classe e a efetivação da emancipação humana. O proletariado é a classe
potencialmente revolucionária por ser a única capaz de desenvolver uma
consciência revolucionária, no sentido de se efetivar a emancipação humana.
Essa consciência, no entanto, é consequência da exploração que sofre nos locais
de trabalho, diante da qual consegue superar as ilusões e limites que burguesia
impõe à sua própria consciência. É através da luta que sua consciência avança e
pode atingir um aspecto revolucionário. Nesse sentido que Marx coloca que “sua
luta contra a burguesia começa com sua própria existência” (2003, p. 53). A
grande questão está, em como a classe operária fará isso. Esta questão é de
fundamental importância para entender o bolchevismo.
A
Comuna de Paris de 1871 se tornou indispensável para compreender esse processo.
Ela representa a primeira tentativa da classe operária em efetivar o seu
projeto de sociedade. Com a Comuna de Paris o marxismo dá um passo adiante na
luta pela emancipação humana, deixando definitivamente claro que a emancipação
do proletariado será obra dos próprio proletariado. Isso significa que a sua
luta deve estar inteiramente em suas mãos, não delegando a outros esta tarefa.
Como o proletariado demonstrou na Comuna de Paris de 1871, o seu primeiro ato
histórico deve ser a abolição do Estado e concomitantemente, da propriedade
privada dos meios de produção.
Bom,
com essa breve análise do marxismo podemos entender como este concebe a luta do
proletariado bem como o processo que deve percorrer na busca pela transformação
social. Agora voltemos ao nosso objetivo, ou seja, discutir o que é o bolchevismo.
Vimos no início que o bolchevismo é fundamentado no pensamento de Lênin. Mas,
como Lênin pensa o processo revolucionário? É o mesmo que está expresso na
concepção do marxismo? Com esta discussão vamos nos aproximar da resposta à
pergunta colocada no título deste artigo.
Lênin
fundamenta sua concepção no marxismo. Como colocamos anteriormente. Ele
fundamenta seu pensamento em torno da ideia da ditadura do proletariado, termo
utilizado por Marx em uma carta resposta ao escritor alemão Georg Weydemeyer. Segundo
Lênin, na crítica que direciona a Kautsky pelas deformações que realiza do
pensamento de Marx, a ditadura do proletariado
É uma questão da maior importância
para todos os países, particularmente para os avançados, particularmente para
os beligerantes, particularmente no momento actual. Pode dizer-se sem exageros
que é a questão principal de toda a luta de classe proletária (LENIN, 1979, p.
13).
Para observar a relação
do leninismo com o marxismo, no entanto, é preciso entender o que ambas as
concepções entendem por isso. Marx, como foi dito anteriormente utilizou o
termo “ditadura do proletariado” uma vez em uma carta resposta dirigida a
Weydemeyer. Weydemeyer havia escrito uma carta a Heinzen e publicada em um periódico
norte-americando, The Democrat, e esta resposta de Marx trata desta carta. Vejamos a passagem onde ele se refere à
ditadura do proletariado:
E agora, ao que diz respeito a mim,
não ostento o título de descobridor da existência das classes na sociedade
moderna, e nem mesmo se quer da luta entre elas. Muito antes que eu, os
historiadores burgueses haviam descrito o desenvolvimento história desta luta
de classes, e os economistas burgueses a anatomia econômica das classes. O que
eu disse de novo foi demonstrar: 1) que a
existência das classes está vinculada unicamente a fases particulares, históricas,
do desenvolvimento da produção; 2) que a luta de classes conduz
necessariamente à ditadura do
proletariado: 3) que esta mesma ditadura só constitui a transição à abolição de todas as classes e a uma sociedade sem classes (MARX, apud IMEL,
1957, p. 47).[gripo do autor]
Engels
deixa ainda mais claro o que Marx concebia por ditadura do proletariado no
prefácio que escreve para a edição inglesa de 1891 de A Guerra Civil na França.
Segundo ele
Ultimamente, as palavras “ditadura
do proletariado” voltaram a despertar sagrado terror ao filisteu
social-democrata. Pois bem, senhores, quereis saber que face tem essa ditadura?
Olhai para a Comuna de Paris: eis aí a ditadura do proletariado! (ENGELS, 1986,
p. 29).
A
ditadura do proletariado, portanto, é reconhecido por Marx como o período em
que a classe operária atinge o seu objetivo de classe, ou seja, a abolição das
classes sociais e a instituição da autogestão social. Não se tratava de um ou
um grupo de indivíduos que se coloca acima do proletariado, trata-se da própria
classe operária em estado de autogoverno da sociedade. Como expressou o próprio
Marx (1986, p. 76), “a Comuna era, essencialmente, um governo da classe
operária, fruto da luta de classes produtora contra a classe apropriadora, a
forma política afinal descoberta para levar a cabo a emancipação econômica do
trabalho”.Nesse processo a abolição do estado se coloca como a primeira tarefa
a ser cumprida. O estado nada mais é do que uma expressão do poder de
determinada classe sobre outra. Como o objetivo da classe operária é a abolição
das classes, então, a abolição estatal coloca-se como o seu primeiro ato
histórico e sua luta. Como colocou Marx (1986, p. 69) “a classe operária não
pode limitar-se simplesmente a se apossar da máquina do Estado tal como se
apresenta e servir-se dela para seus próprios fins”.
E
Lênin, qual seria seu objetivo com a criação de um partido de toda a Rússia? Levar
a cabo esse ato histórico do proletariado? Vejamos:O primeiro ponto a destacar
é como Lênin concebia a consciência proletária. Ele concorda que a classe
revolucionária é o proletariado, assim como já havia sido demonstrado por Marx
anteriormente. Lenin, no entanto, concebe a classe operária destituída de uma
consciência revolucionária. Ela, por si só, não teria condições de atingir uma
consciência revolucionária e efetivar a transformação social.Segundo ele, o
máximo que o proletariado pode conseguir chegar é a uma consciência sindical.
Para ele,
A história de todos os países
atesta que, pelas próprias forças, a classe operária não pode chegar senão à
consciência sindical, isto é, à convicção de que é preciso unir-se em
sindicatos, conduzir a luta contra os patrões, exigir do governo essas ou
aquelas leis necessárias aos operários etc. (Ibdem, p. 24).
É por este motivo que ele
coloca como objetivo central educar a classe operária, em suas palavras:
“devemos empreender ativamente a educação política da classe operária,
trabalhar para desenvolver sua consciência política” (LENIN, 1978, p. 45). Na
concepção de Lenin, a consciência revolucionária não emerge no interior desta
classe. Ela é consequente de fora da própria classe. Segundo ele, “a
consciência política de classe não pode ser levada ao operário senão do exterior, isto é, do exterior
da luta econômica, do exterior da esfera das relações entre operários e
patrões” (ibdem, p. 62). Mas a quem cabe levar esta consciência revolucionária
ao proletariado? Segundo ele, a um conjunto de militantes profissionais. A
esses militantes cabe a tarefa de ser a vanguarda do movimento operário no
período de transição do capitalismo para o socialismo, sendo eles detentores de
uma consciência revolucionária e a quem cabe o papel histórico de dirigir a
classe operária e leva-la a atingir a posição revolucionária. O partido
bolchevique seria, portanto, a reunião destes profissionais e formaria a
organização revolucionária que iria dirigir o proletariado, se colocando à
frente das decisões e decidindo o caminho a ser seguido.
Esta questão apontada por
Lenin destoa radicalmente dos princípios fundamentais do marxismo.É daqui que
emerge a profunda confusão em torno do que seja o bolchevismo. Marx já havia
chamado a atenção de que “não se julga o indivíduo pela consciência que ele faz
de si próprio. É preciso, pelo contrário, explicar esta consciência pelas
contradições da vida material” (MARX,1977,
p. 25). É fundamental considerar esta questão, uma vez que Lênin
apresenta Marx como a principal referência de seus estudos. Basta dar uma
olhada em sua bibliografia para confirmar isso. Marx, às vezes, é citado em
exagero. Isso, no entanto, pode confundir leitores precipitados e reforçar a
idolatria de militantes de organizações políticas à figura de Lenin. O fato de
Lenin citar Marx e afirmar que o utiliza como referência em seus escritos não
faz dele um marxista, nem mesmo um militante revolucionário.
Esclarecido este ponto é
importante observar que em Marx não há a defesa da necessidade de profissionais
para guiarem a classe operária. Marx afirmou categoricamente no Manifesto (2003,
p. 107) que “a emancipação da classe operária deverá ser conquistada pela
própria classe operária”.Diante de tudo que já foi apresentado até aqui
chegamos a duas hipóteses fundamentais em torno da concepção de Lênin: 1) ou
ele não compreendeu o marxismo; b) ou ele utilizou do marxismo por oportunismo,
ou seja, para atender seus próprios interesses em detrimento dos interesses do
proletariado. A primeira hipótese pode ser facilmente descartada, considerando
a clareza em que Marx havia exposto os princípios da luta revolucionária do
proletariado, principalmente após a Comuna de Paris de 1871, onde foi rasgado
de vez o véu que ocultava o papel do Estado na sociedade, e pelo fato de Lênin
apresentar em suas obras um profundo conhecimento do pensamento de Marx. A
segunda hipótese pode se tornar ainda mais claro na Revolução Russa de 1917, em
que Lênin foi criticado abertamente por diversos militantes que apontava o seu
lado opressor e formador de um novo modo de capitalismo, o capitalismo de
Estado.
Por isso Lenin pensar e
defender com unhas e dentes o centralismo, cujo centro de decisão e organização
seria ele próprio e seus auxiliares. Desta forma, a segunda hipótese apontada
anteriormente torna-se irônica uma vez que Lenin defendia que esse centralismo
se tratava de uma campanha contra o oportunismo. Segundo Lenin, citado por Rosa
Luxemburgo (1991, p. 49), “trata-se de forjar, mediante os parágrafos do
estatuto, uma arma mais ou menos afiada contra o oportunismo. Quanto mais
profundas forem as origens do oportunismo, tanto mais afiada essa arma precisa
ser”.
Herman Gorter (1981, p.
39), em carta direcionada a Lenin já havia percebido isso, expressando de forma
clara: “só posso ver oportunismo em sua atitude”. Um exemplo deste oportunismo
foi evidenciado por Gorter ao enfatizar o papel conservador e reacionário dos
sindicatos que eram proposto por Lenin - que na Revolução Russa assumiu o papel
de impedir o avanço da luta do proletariado, tornando-se um empecilho da
autogestão social, um instrumento da burocracia estatal contra os trabalhadores
– questão já observada pelo próprio Lênin. Mas Gorter ressalta:
Você, companheiro, e a Executiva de
Moscou, sabem que os sindicatos representam forças contra-revolucionárias. É o
que se deduz claramente das suas teses. Apesar disso você quer conservá-los. [...]
Você próprio afirma em suas teses que as organizações por fábrica devem ser e
são nosso objetivo. Apesar disso você quer esmaga-las. Você quer esmagar as
organizações nas quais os operários, cada operário, e, em consequência, a
massa, podem chegar a ter força e o poder, e quer conservar aquelas onde a
massa é um instrumento morto na mão dos dirigentes (Ibdem, pp. 43-44).
Finalmente Gorter chama a
atenção de Lênin para o que de fato representa para a luta revolucionária do
proletariado.
Você, companheiro, pretende levar
os sociais-democratas, os independentes e outros ao parlamento e ao governo
para mostrar que não passam de empulhadores. Você quer utilizar o parlamento
para mostrar que não serve para nada (Ibdem, p. 70).
Lenin, no entanto,
trabalhava duramente em torno de seus interesses. O partido era o seu maior
objetivo, cuja característica era se manter na dianteira do movimento operário,
com um chicote em uma mão e um ferro em brasas em outra. Como diz ele próprio:
Sem partido férreo e temperado na
luta, sem um partido que goze da confiança de tudo que exista de honrado dentro
da classe, sem um partido que saiba tomar o pulso do estado de espírito das
massas e influir nele é impossível levar a cabo com êxito essa luta (19841, pp.
41-42).
O partido Lênin não
escondia o lado opressor e férreo do estado que almejava constituir na Rússia. Não
pestanejava em afirmar que concebia a ditadura como “um poder férreo” (LENIN,
1980, p. 45). Estava propício a qualquer coisa para defender o seu próprio
oportunismo. O partido deveria ser fechado temendo a criação de um contra-poder
que pudesse coloca-lo em xeque. A aqueles que caminhassem neste sentido de ser
uma barreira e um incômodo, segundo ele próprio, “merecem ser fuzilados”
(Ibdem, p. 174).
Para continuarmos ainda
um pouco mais, torna-se, no entanto, importante observar que a discussão que
realizamos até aqui esclarece uma dúvida e uma confusão existente em torno da
relação entre Lênin e Marx. A concepção de ambos, que teve como consequência a
sua continuação e aprofundamento por seus epígonos foi denominada de leninismo
e marxismo. O leninismo teve portanto na experiência da Revolução Russa a sua
principal referência. Em 1917 Lenin conseguiu efetivar o seu grande objetivo de
um partido de toda a Rússia, partido esse que se denominou partido bolchevique,
tendo ele à frente como um exímio ditador. A confusão é que tanto Lênin quanto
seus seguidores, colocam o leninismo e o marxismo em um mesmo plano, como se
fossem equivalentes e defendessem os mesmos interesses. É preciso observar, a
partir do que já foi colocado, que são concepções radicalmente distintas.
O marxismo, relembrando
Korsch (2008) é a expressão teórica do movimento revolucionário do
proletariado. O leninismo é a expressão teórica da burocracia estatal, sendo ao
mesmo tempo um defensor do capitalismo em sua forma estatal, sendo, ao invés de
uma ditadura do proletariado, como concebido por Marx, defensor e agente de uma
nova forma de “ditadura sobre o proletariado” (KORSCH, 2008, p. 107), ou como
expressou Makhaïski (1981, p. 141):
A afirmação dos bolcheviques
visando a apresentar sua conquista do poder como a ditadura, como a dominação
da classe operária, de fato não é mais do que uma das numerosas fábulas que o
socialismo inventou ao longo de sua história. [...] uns e outros prometem à
classe operária sua dominação, deixando-a nas mesmas condições de servidão e
fazendo-a coexistir com a burguesia que possui sempre todas as riquezas.
Isso fica mais claro
ainda na própria concepção de Lenin que concebe a ditadura do proletariado um
período em que a luta de classes ainda não tenha sido destruída, mas trata-se
de um novo período da luta de classes, como ele afirma: “a ditadura do
proletariado não e o fim da luta de classes mas a sua continuação em novas
formas” (1974, p. 11). Essa afirmação, por si só, demonstra a enorme distância
e discrepância de sua concepção com a teoria do proletariado, cuja expressão
mais acabada é o marxismo.
Apesar do ferro em brasas
que apontava para seus opositores, não faltou críticas e combate ao filho que
Lênin gerou e criou na Rússia, o bolchevismo.Até mesmo seu comparsa na
Revolução Russa, Trotsky, através do texto Nossas
Tarefas Políticas,publicado em1904, já havia observado que “no esquema de
Lenin o Partido substituiria a classe” (TROTSKY, apud 1981, p. 19). Apesar da
defesa que Lenin professou da revolução proletária, sua concepção e a
experiência que levou a cabo na Revolução Russa através do partido bolchevique
denota que este não destoa de outras organizações burocráticas. Mas vejamos com
mais detalhes esta questão.
O
partido bolchevique
Depois de tudo que foi
dito, podemos concluir que o bolchevismo é uma concepção política, uma
tendência que emerge no interior da social-democracia russa. É consequente da
prática do partido bolchevique cuja referência era baseada na concepção de
Lenin. Contudo, precisamos ainda discutir o que é o partido bolchevique. Já
vimos sobre o processo história de sua constituição, referência teórica etc.
Precisamos discutir um pouco mais sobre sua prática. Assim, compreenderemos a
respeito da concepção política ao qual ele dá origem, o bolchevismo. Para
compreender as práticas deste partido é preciso esclarecer o que são partidos
políticos?
São organizações burocráticas que
visam à conquista do Estado e buscam legitimar esta luta pelo poder através da
ideologia da representação e expressam os interesses de uma ou outra classe ou
fração de classe existentes (VIANA, 2003, p. 12).
O
partido bolchevique era portanto, uma organização burocrática que trazia em sai
essas características de um partido, isto é, se organizava sob o manto da
relação entre dirigentes e dirigidos. Internamente haviam aqueles que mandavam
e aqueles que deveriam obedecer. O grande mandante era Lênin, que conseguiu
reunir em torno de si um conjunto de outros indivíduos que viam no partido uma
forma de manter determinados privilégios em detrimento da classe operária. Esse
grupo, tendo Lênin à frente, eram os exploradores e controladores da classe
operária russa. O discurso que utilizavam de que representavam a classe
operária era apenas uma forma de ocultar a opressão e exploração que exerciam
sobre esta classe. Esse partido cultivou
A ideologia da nulidade operária, considerando os trabalhadores mera
força de trabalho que têm que ser “dirigidos”, “organizados” pelo partido. O socialismo
de dirigentes e dirigidos não é socialismo, mas autoritarismo burocrático.
Mantém o trabalhador da linha de produção ganhando “por produção” e subordinado
à chefia, nomeada pelo partido e pelo Estado (TRAGTENBERG, 1988, p. 118).
A ditadura proclamada por
Lênin e muito bem realizada pelo partido bolchevique – denominada por ele de
socialismo - foi agente do que Pannekoek denominou de capitalismo de estado.
Segundo ele, “o que se designava por socialismo de Estado se revolveu como
capitalismo de estado sobre a forma política de uma ditadura” (PANNEKOEK, 1973,
p. 19). O bolchevismo se configurou de acordo com a concepção de Lênin, que
defendia a organização da classe operária por um grupo de profissionais, de
intelectuais, que eram portadores de uma consciência revolucionária. O que
confunde os seus seguidores é que ele não deixou claro que tipo de consciência
revolucionária era esta. E isso confundiu por demais militantes políticos após
1917. Esta consciência revolucionária tratava-se de uma consciência da classe
intelectual, ou da intelligentsia,
como denominou Makhaïski (1981), sendo ao mesmo tempo expressão da consciência
burguesa.Era uma consciência revolucionária por colocar abaixo o capitalismo
privado, transformando-o em capitalismo de estado. Como colocou Pannekoek
(1973, p. 134) “esta burocracia estatal, como uma nova classe dominante, dispõe
diretamente do produto, portanto, da mais-valia, ao passo que a classe operária
é explorada como assalariada”.A autogestão social certamente não era o objetivo
de Lenin, como aponta Arthur Rosenberg (1986, p. 302)
O objetivo devia ser o de fundar,
após a queda do tzar, uma república russa sob a forma da “ditadura democrática
dos operários e camponeses”. Tal república russa seria também um Estado burguês
fundado na propriedade privada burguesa.
O bolchevismopassou a defender,
assim, relações estabelecidas sob o manto do capitalismo, fazendo do partido o
meio de dirigiros negócios de uma minoria que se organiza em torno de um
partido onipotente. Desta forma,
O bolchevismo ligava à direção
unipessoal da empresa, por um administrador nomeado pelo Estado, a utilização
do método de Taylor de organização do trabalho e o pagamento por produtividade
individual. Enfatizava o estudo e o emprego do que, na sua opinião, havia de
científico no taylorismo (TRAGTENBERG, 1988, p. 86).
Para usufruírem deste
privilégio que a exploração dos trabalhadores lhes oferece, é que almejavam o
poder de Estado, objetivo que realizaram em 1917 ao tomarem o poder estatal
russo através do partido bolchevique. Isso fica mais claro na proposta de Lenin
em nacionalizar os bancos russos e não querer a sua abolição. Por isso ele
afirmar que “os grandes bancos constituem o ‘aparelhos do Estado’ de que
necessitamos para realizar o socialismo” (LENIN, 1976, p. 94). Isso lhe daria
de fato o dinheiro necessário para viver como um burguês sempre sonhou,
mergulhado no vil metal. Daí a importância de defenderem e propagarem a
ideologia da representação, questão de fundamental importância para as
organizações burocráticas.
Importante ressaltar que
o partido bolchevique, apesar de suas pretensões teóricas revolucionárias, é um
órgão burguês, na medida em que é um Estado em miniatura, cuja finalidade é
tomar o poder, não destruí-lo (Ibdem, p. 115). Isso explica o caminho que seguiu
a Revolução Russa, guiada e determinada por seus interesses. A concepção
bolchevique, portanto, considera que ao proletariado não cabe outra posição,
senão, se convencer de sua ignorância e de que os seus dirigentes estão
corretos, mesmo que a direção que dão das coisas seja a manutenção brutal da
exploração sobre ela, dito de outra forma:
A Revolução Russa só pode triunfar
porque o Partido Bolchevique, como uma unidade fechada e altamente
disciplinada, dirigiu as massas, e porque a clara visão e a confiança
inquebrantável de Lenin e seus amigos indicaram o caminho correto [...] o que
importa são os dirigentes do partido, revolucionários sagazes e experimentados;
as massas não precisam mais que o convencimento de que o partido e seus
dirigentes têm a razão (PANNEKOEK, 1973, p. 134).
O partido bolchevique,
para proteger o seu interesse de manter em suas mãos o estado e a direção da
classe operária, se colocavam contra a autonomia da classe operária. Permitir
que a classe operária seguisse seu próprio rumo e tomasse em suas mãos a organização
de sua luta, era o maior perigo para o partido, pois este poderia ser
destruído, assim como seus privilégios e o poder que tanto almejava. Por isso
deveriam lutar para manter a classe operária sob o seu controle. Segundo
Tragtenberg (1988, p. 82), “é que o Partido Bolchevique queria não só o
monopólio da revolução, mas também o poder em seus vários níveis, para
aniquilar uma revolução que seguia uma via autônoma”.
Considerações
Finais
Considerando,
portanto, a discussãorealizada inicialmente, podemos concluir que o bolchevismo
é uma concepção burocrática pautada na prática e ideologia da representação, e
se fundamenta na prática do partido bolchevique na Rússia. Esta concepção não
considera a tarefa histórica do proletariado como agente da transformação,
delegando esta a um grupo de burocratas que se organizam em torno do Estado,
aos quais cabem a tarefa de dirigir este processo. Nesta concepção nega-se a
autonomia da classe trabalhadora em detrimento do dirigismo do partido e de
outras organizações burocráticas, a exemplo dos sindicatos.
Para
o bolchevismo a revolução só pode ser alcançada através do poder estatal. Nesse
sentido, nega-se a sua destruição e defende-se a submissão do proletariado às
suas ordens. Esta concepção assume, portanto, a defesa de uma sociedade
dividida em classes sociais, a manutenção da relação dirigentes e dirigidos.
Não há espaço nesta concepção para conceber a emancipação humana. Esta, pelo
contrário, é convertida em emancipação do partido que assume o poder do estado
e não da humanidade, cujo pressuposto é a abolição do capitalismo de seu
mantenedor, o estado.
O
bolchevismo, portanto, do ponto de vista do proletariado, é uma concepção a ser
combatida. A emancipação humana pressupõe a sua superação. Esta é um entrave para
o avanço da luta revolucionária, e como tal, se colocará como um empecilho para
a autogestão social, uma vez que em um processo revolucionária pode querer
dirigir a classe operária. E neste processo a classe operária terá que
esmaga-lo e destruí-lo.
É preciso ter clareza, portanto, quebolchevismo
não é o mesmo que marxismo. São concepções radicalmente diferentes. O termo
marxismo-leninismo, marxismo bolchevique, social-democracia ou algo semelhante,
é nada mais do que fruto de uma confusão e de concepções deturpadas sobre o que
é o marxismo e o que é o bolchevismo.Alguns podem dizer que ele rompeu ou que
abandonou algumas teses do marxismo. Pannekoek (1973, p. 128), neste sentido é
muito claro: “O bolchevismo russo não pode abandonar o caminho do marxismo,
pois nunca foi marxista”. Em síntese, a luta pela transformação humana
pressupõe também a superação desta ideologia, o aprofundamento e
desenvolvimento do marxismo e o combate do bolchevismo.
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