quinta-feira, 19 de julho de 2018

Escola Derivacionista, Estado Capitalista e Marxismo

Escola Derivacionista, Estado Capitalista e Marxismo

Edmilson Marques

          Introdução A Escola Derivacionista realizou a sistematização teórica sobre o estado capitalista, o que tem contribuído consideravelmente com o avanço da expressão teórica da luta revolucionária do proletariado. Contudo, considerando as poucas obras já traduzidas para o português, ainda é pouco divulgada e pouco conhecida no Brasil. Nesse sentido, retomar a discussão sobre as suas especificidades é um meio de possibilitar, simultaneamente, a compreensão do papel do estado na sociedade atual. 
      Neste artigo, a proposta é a de apresentar uma breve abordagem sobre a concepção de estado desenvolvida pela Escola Derivacionista e sobre a sua contribuição para a teoria do proletariado. Para isso, dividimos esta discussão nos seguintes tópicos. No primeiro momento apresentaremos a Escola Derivacionista, seus representantes e seu surgimento; Posteriormente, abordaremos as ideias centrais da concepção de estado desenvolvidas pelos intelectuais da Escola Derivacionista. Por fim, Analisaremos o que representa a concepção de estado da Escola Derivacionista para o marxismo.

Representações Cotidianas: teoria e pesquisa


Sinopse
Representações Cotidianas: teoria e pesquisa é uma coletânea de estudos sobre a teoria e a pesquisa das representações cotidianas. O livro busca avançar para além da ideologia do senso comum e das representações sociais. Encontramos aqui respostas apresentadas por Edmilson Marques sobre o que são as representações cotidianas e a sua sistematização teórica. Maria Angélica Peixoto aborda a ideologia das representações sociais e a teoria das representações cotidianas. Nildo Viana analisa: 1. A distinção entre convicção e opinião; 2. “Aquilo que Marx denominou de 'representações ilusórias' da realidade”, observando as relações entre duas formas elementares de ilusões, o imaginário e a ideologia, e o processo em que uma transforma-se na outra. Cassia Soares, Heitor Pasquim, Luciana Cordeiro e Sheila Lachtim propõem “a construção participativa de material instrucional para jogo educativo e as principais representações cotidianas expostas e transformadas durante a construção do material”, com atenção para as representações cotidianas sobre drogas. Alessandra Cofani, Celia Campos e Heitor Pasquim analisam a concepção de juventude de indivíduos de classes ou frações de classes distintas, enfatizando o consumo de álcool por jovens de diferentes grupos sociais. A coletânea é concluída com um estudo de Cassia Soares, Elda de Oliveira, Leandro Batista e Marco Separavich sobre as representações cotidianas produzidas por “jovens do ensino médio de uma escola pública, no bairro de Guaianazes na periferia de São Paulo”, sobre a “periferia, a mídia, a juventude, os rolezinhos, a juventude e o consumo de drogas”.

O livro pode ser adquirido pela página da editora através do link: https://www.editoracrv.com.br/produtos/detalhes/33049-representacoes-cotidianasbrteoria-e-pesquisa







quinta-feira, 2 de fevereiro de 2017

A Comuna de Paris de 1871

A Comuna de Paris de 1871**


Edmilson Marques*

             O que foi a Comuna de Paris de 1871? Existem diversas interpretações sobre o que foi este evento. O objetivo aqui não é apresentar mais uma interpretação sobre a mesma. Por representar uma das mais marcantes experiências de luta do proletariado revolucionário, então, buscaremos neste pequeno texto ressaltar o seu significado para a perspectiva proletária. É, portanto, à teoria da luta revolucionária da classe operária que recorremos com o objetivo de abordar de forma breve o que foi e o que representa atualmente a Comuna de Paris de 1871.
            Em meados de março de 1871, a classe operária e as demais classes oprimidas de Paris e de alguns centros secundários da França já viviam sob o abominável poder e o ínfimo interesse da classe burguesa. A burguesia encontrava no estado um escudo que a protegia e ao mesmo tempo impedia a radicalização da luta de classes. Trata-se aí do contexto em que o capitalismo já demonstrava como outrora a sua face mais nua e perversa. Como colocou Marx ainda naquele período: “A ‘sociedade atual’ é a sociedade capitalista, que existe em todos os países civilizados, mais ou menos livre de complementos medievais, mais ou menos modificada pelas particularidades do desenvolvimento histórico de cada país, mais ou menos desenvolvida (MARX, 1961, p. 223).
            Era neste contexto que se encontrava a classe operária de Paris em março de 1871, ou seja, submetida à repressão estatal e à exploração burguesa. A única alternativa que lhe restava para se livrar daquela situação era assumir a responsabilidade de gerir sua própria vida tomando em suas mãos o controle da sociedade. Assim, “em meio às fraquezas e traições das classes governantes, os proletários da capital compreenderam que chegara sua hora de salvar a situação, tomando nas mãos a direção das questões públicas” (LISSAGARAY, 1991, p. 100). A classe operária, então, se coloca declaradamente à luta aberta e declarada contra seus opressores e exploradores. Marx (1986, p. 63) observa que “a gloriosa revolução operária de 18 de março apoderou-se indiscutivelmente de Paris”. Não pestanejaram em assumir o controle de sua própria vida e imediatamente desenvolveram uma nova forma de organização social.
            No dia seguinte ao 18 de março foi constituído o Comitê Central, que segundo os próprios comunardos, como eram chamados os integrantes da Comuna, não se tratava propriamente de um governo mas de uma

Sentinela do povo, como o Comitê de vigilância e organização, encarregado de velar para que não retirasse ao povo, por surpresa ou por intriga, o fruto de sua vitória; encarregado de organizar a manifestação definitiva da vontade popular, isto é, a eleição livre de uma assembleia que represente não apenas as ideias, mas também os interesses da população parisiense (DUNOIS, p. 62)

O Comitê Central seria inferiorizado oito dias depois ao ser submetido à Comuna[1], que seria formada por delegados eleitos por sufrágio universal em cada um dos 20 distritos da grande Paris. O Comitê Central decretara que haveria um conselheiro para cada vinte mil habitantes e fração de dez mil (LISSAGARAY, 1991, p. 111). No dia 26 de março as eleições são realizadas e Paris passa a ser reorganizada segundo os princípios da Comuna. A partir daí os operários - como expressaram em uma publicação no dia 29 de março, através da qual anunciaram a constituição da Comuna - passaram a ser “os senhores de vossos destinos” (DUNOIS, 1968, p. 64).
            A eleição dos integrantes da Comuna por sufrágio universal foi um processo radicalmente distinto do processo eleitoral estabelecido pela democracia burguesa, uma vez que os eleitos “eram responsáveis e substituíveis a qualquer momento” (MARX, 2011, p. 17). Segundo Viana (2011b, p. 09),

O sufrágio universal, aparentemente, é semelhante ao processo da democracia burguesa, representativa, mas possui, no caso da auto-organização comunal, um caráter totalmente distinto. Não se trata de eleições parlamentares, com períodos de mandatos fixos, com os eleitos recebendo salários privilegiados e adquirindo poder e estabilidade. Na verdade, o sufrágio universal significa a supremacia da população sobre os delegados eleitos, cabendo a ela a escolha. Porém, esta escolha remete aos demais princípios – e são estes que mostram a diferença radical em relação à democracia representativa. O princípio da removibilidade coloca que qualquer delegado pode ser removido a qualquer momento e o princípio da substitubilidade deixa claro que pode ser substituído por outro. A decisão sobre a remoção e substituição é realizada pela população e assim esta escolhe, remove, substitui sempre que for necessário, sempre que o delegado não corresponder ao esperado e não seguir as diretrizes às quais deve se submeter. Daí vem o princípio da responsabilidade, o mais importante de todos, o que significa que o delegado escolhido não tem autonomia e nem pode criar interesses próprios, tal como na democracia burguesa, e é o que garante a decisão coletiva das assembleias em substituição à autonomização dos eleitos.
           
            A revogabilidade dos delegados eleitos a qualquer momento era uma forma de impedir o desenvolvimento de relações de dominação, da burocracia, pois eram submetidos aos interesses coletivos, sendo seu papel o de executar as medidas indicadas pelos operários em assembleias. Eram poucos os que acreditavam que a classe operária poderia mostrar para a humanidade o caminho para se efetivar a supressão das classes sociais, “e sua notável atuação política e militar parecia levar a Europa à dúvida sobre se o que via era uma realidade ou simplesmente os sonhos de um passado remoto” (MARX, 1986, p. 63).
            Não se tratava de um sonho, era a mais pura realidade aquilo que os operários estavam efetivando, ou seja, o esboço de uma sociedade na qual definitivamente se concretizava a emancipação humana, “a abolição da própria dominação de classe” (MARX, 1986. p. 72). Na luta contra os seus rapinadores buscaram destruir a expressão mais poderosa da opressão, o estado. Como colocou Bakunin (2011, p. 37) o ato histórico empreendido pela Comuna “foi uma negação audaz, bem pronunciada, do Estado”. A Comuna, ao abolir o exército permanente, a polícia, a burocracia e a magistratura, além do seu aliado, o clero, realizou a abolição do Estado (VIANA, 2011a, pp. 64-65). Com isso a Comuna destruiu “os dois grandes fatores de gastos: o exército permanente e a burocracia do Estado” (MARX, 1986, p. 75). Não temos muito espaço aqui para apresentar ao leitor com detalhes todas as ações empreendidas pela Comuna[2] mas apresentaremos algumas das formas sociais que assumiu a sua atuação que nos possibilita ter uma ideia de como se configurou.
            A pós a supressão do estado e instituição do autogoverno dos produtores os Comunardos trataram de iniciar a reorganização de Paris segundo princípios pautados pelo interesse coletivo da classe operária. A segurança nacional passou para as mãos dos próprios operários ao abolirem o exército permanente e a polícia; empreenderam a abolição da concepção burguesa de estrangeiro, admitindo todos que queriam integrar a Comuna; decretaram a separação entre a igreja e o estado e expropriaram seus bens devolvendo-os aos produtores de Paris, obrigando os padres a voltarem, como faziam os seus antepassados, a viverem das esmolas de seus fiéis; apesar da Comuna não ter tido tempo de avançar com o seu projeto de ensino, foi estabelecido que as escolas fossem abertas à população através da instituição do ensino público sem a interferência da igreja e do estado, e pautadas pelo caráter essencialmente socialista e de instrução integral; os funcionários judiciais foram despojados de sua independência e convertidos em funcionários eletivos, responsáveis e demissíveis a qualquer momento; estabeleceu-se que qualquer servidor público, incluindo os membros da Comuna, recebesse salário igual ao de um operário; suprimiram o trabalho noturno para os padeiros; suprimiram os impostos sobre as classes oprimidas e exploradas; instituíram aos patrões a proibição de baixarem os salários e impor multa sobre qualquer que fosse o pretexto; todas as oficinas e fábricas fechadas foram entregues aos operários; realizaram a queima de guilhotinas em praça pública. Em síntese, a Comuna estabeleceu uma transformação radical nas relações sociais, incluindo, inclusive, uma profunda mudança cultural, de consciência, valores, sentimento, etc., como pode ser notado como exemplo na decisão de se demolir a coluna imperial da Praça Vendôme[3].

Já não havia cadáveres no necrotério nem assaltos noturnos, nem simples furtos. Pela primeira vez desde os dias de fevereiro de 1848, podia-se andar com segurança pelas ruas de Paris, e isso sem que existisse polícia de qualquer espécie. Já não se ouve falar – dizia um membro da Comuna – de assassinatos, roubos e agressões” (MARX, 1986, p. 83).

            A Comuna foi, portanto, a primeira experiência de luta revolucionária levada a cabo pela classe operária; a manifestação política mais acabada desta classe através da qual demonstrava concretamente o seu projeto de sociedade, cujas características se fundamentaram no autogoverno dos produtores, na autogestão social. Segundo Marx, “a Comuna era, essencialmente, um governo da classe operária, fruto da luta de classe produtora contra a classe apropriadora, a forma política afinal descoberta para levar a cabo a emancipação econômica do trabalho” (MARX, 1986, p. 76).
            Aquela experiência perdurou entre 18 de março e 28 de maio. A sua destruição foi realizada pelo estado em apoio à burguesia através de um massacre que teve início no dia 21 de maio e terminou no dia 28 daquele sangrento mês[4]. Ali foi destruída uma experiência que estava caminhando para sua realização a nível nacional. Apesar daquele massacre, o projeto político de organização social apresentado pela classe operária não foi abolido e continua vivo na teoria do proletariado. Os ensinamentos da Comuna vêm perpetuando até os dias atuais como referência na luta por um mundo novo, por uma sociedade destituída de luta de classe. Sobre isso Marx expressa:

A Paris dos operários de 1871, a Paris da Comuna será para sempre celebrada como a precursora de uma sociedade nova. A memória de seus mártires viverá, como num santuário, no âmago do coração da classe operária. Seus exterminadores, a História já os pregou a um pelourinho eterno e todas as preces de seus padres não bastarão para resgatá-los (MARX, 1986, p. 97).

O significado histórico da Comuna de Paris de 1871 não ficou no passado, é parte do presente; deve ser lembrado enquanto o objetivo da classe que a gerou não seja efetivado. E seu objetivo continuará como um espetro a assombrar o capitalismo enquanto este existir, até o dia em que este venha ruir pelas mãos das classes explorada e oprimidas e finalmente, como foi no dia 18 de março de 1871, possamos acordar em uma nova sociedade com o grito “Viva a autogestão Social” nos encontrando definitivamente com a liberdade. Em síntese, a Comuna deixou para a humanidade o projeto de uma nova sociedade pautada na autogestão social. A sua construção depende única e exclusivamente da luta revolucionária da classe operária. Isso impõe a aqueles que almejam a emancipação humana se inserir na luta e contribuir para que o proletariado inicie o mais rápido possível a sua missão histórica.


Referências Bibliográficas

BAKUNIN, Mikhail. A Comuna de Paris e a Noção de Estado. In: VIANA, Nildo (org.). Escritos Revolucionários sobre a Comuna de Paris. Rio de Janeiro: Rizoma, 2011.
DUNOIS, Amedée. Textos e Documentos. Compilados e Comentados. In: TROTSKY, L. et al. A Comuna de Paris. Rio de Janeiro: Laemmert, 1968.
LISSAGARAY, Prosper-Olivier. História da Comuna de 1871. São Paulo: Ensaio, 1991.
MICHEL, Louise. A Comuna I. Lisboa: Presença, 1971b.
______. A Comuna II. Lisboa: Presença, 1971a.
MARX, Karl. A Comuna de Paris. In: VIANA, Nildo (org.). Escritos Revolucionários sobre a Comuna de Paris. Rio de Janeiro: Rizoma, 2011.
______. A Guerra Civil na França. São Paulo: Global, 1986.
______. Crítica ao Programa de Gotha. In: MARX, K. e ENGELS, F. Obras Escolhidas, vol. 2. Rui de Janeiro: Vitória, 1961.
VIANA, Nildo (org.). Escritos Revolucionários sobre a Comuna de Paris. Rio de Janeiro: Rizoma, 2011a.
______. O Significado Político da Comuna de Paris. Florianópolis: Revista Em Debate, ISSN 1980-3532, jul. dez, p. 60-82, 2011b.




[1] Segundo Marx (2011, p.17) foi integrada em sua maioria por operários ou representantes reconhecidos da classe operária.
[2] Para um aprofundamento sobre as especificidades da Comuna de Paris de 1871, entre diversas publicações sobre o assunto, sugiro a leitura das seguintes obras: A Guerra Civil da França, de Karl Marx (1986); História da Comuna de 1871, autoria de Prosper-Olivier Lissagaray (1991); os documentos organizados por Amedée Dunois, publicados na coletânea A Comuna de Paris (1968); As obras A Comuna I e A Comuna II, de Louise Michel (1971) e o livro Escritos Revolucionários sobre a Comuna de Paris, coletânea organizada por Nildo Viana (2011).
[3] Os comunardos defendiam que a Coluna Vêndome, assim também denominada, estátua erigida pela primeira vez em 1810 por Napoleão Bonaparte, era “um monumento de barbárie, um símbolo de força bruta e de falsa glória, uma afirmação do militarismo, uma negação do direito internacional, um insulto permanente dos vencedores aos vencidos” (VINOI, 1968, pp. 74-75), isto é, uma representação da dominação exercida pela classe dominante sobre a demais classes dominadas.
[4] As execuções continuaram após o dia 28 de maio de 1871. Segundo Dunois (1968, p. 52) estima-se que foram mais de 30 mil mortos entre a população operária, 38 mil presos, incluindo mulheres e crianças, e cerca de 28 mil enviados para cárceres das costas do oceano. 





** Texto publicado originalmente na edição 18 da revista Enfrentamento em 2015.
* Professor do curso de história da Universidade Estadual de Goiás. Militante do Movimento Autogestionário.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

O QUE É BOLCHEVISMO?

O que é o bolchevismo?**



Edmilson Marques*

Introdução

Esta é uma pergunta difícil de ser respondida. A questão é que há diversas interpretações sobre o que é o bolchevismo, muitas das quais apresentam concepções distintas. Isso, no entanto, proporciona uma complexidade e uma dificuldade em se compreender o que ele seja de fato. A questão é que o bolchevismo nasce fundado em uma profunda confusão de seu próprio mentor, e futuramente, por seus epígonos. Estes contribuíram para que se generalizasse essa confusão sobre o seu real significado, até mesmo intelectuais conceituados acabam manifestando uma concepção deturpada do que ele seja. Por este motivo, este texto tem como objetivo fundamental discutir o que é o bolchevismo.
Para isso buscaremos resgatar o seu significado histórico, e assim, contribuir para que se inicie um processo de superação das ilusões que giram em torno do que representou, o seu papel na história humana e o que representa na atualidade. A clareza em torno de seu significado pode proporcionar aos militantes revolucionários uma ferramenta para que sua luta não perca de vista o objetivo fundamental da emancipação humana, e que não deixe que as ilusões sejam uma barreira para leva-lo a caminhos distintos deste.

Origem do bolchevismo

            A origem do bolchevismo deve-se ao seu mentor e criador, Vladímir Ilitch Ulianov, ou simplesmente Lénine ou Lênin como é mais conhecido. Lênin passou a ser reconhecido por muitos como o “líder da revolução Russa de 1917”, experiência esta que lhe rendeu a insígnia histórica de revolucionário e principal responsável pela efetivação histórica do projeto de sociedade desenvolvida pelo proletariado. Segundo ele próprio, na obra “Esquerdismo, Doença Infantil do Comunismo”,“o bolchevismo, existe como corrente do pensamento político e como partido político desde 1903”(LÊNIN, 1981, p.14).
            A origem, portanto, do bolchevismo remete a um projeto de Lênin de se criar um partido de novo tipo, como ele costumava chamar. Esse projeto teve início no final do século XVIII, quando Lênin, para fortalecer o seu projeto de criar um grande partido, teve a ideia de elaborar um jornal que atingisse militantes da social-democracia “de toda a Rússia”. O jornal batizado por ele como Iskra seria uma ferramenta para reunir militantes e criar uma força para efetivar o seu principal projeto[1]. Assim, “tendo assegurado a ajuda dos sociais-democratas e criado sólidos pontos de apoio parao futuro jornal, Lénine partiu para o estrangeiro em julho de 1900” (IML, 1984, p. 74).
            Lênin buscou apoio em militantes social-democratas que residiam na Suíça, que era onde viviam os membros do grupo Emancipação do Trabalho, tratando-se de P. Axelrod, Plekhánov, Vera Zassúlitch, P. Axelrod, A. Potréssov, e Martov os quais se reuniram em Corsier para discutir a proposta de elaboração do jornal[2]. O grupo concordou com a proposta de Lênin, e seriam co-redactores do mesmo. Contudo Plekhánov, que era grande amigo de Lênin, temendo perder espaço concordou com a proposta desde que “o jornal fosse publicado sob a sua direção e que todas as ligações com a Rússia passassem através dele, na Suíça” (Idem, p. 75).Assim, trabalharam juntos na elaboração do jornal.

Em Outubro de 1900 foi publicada em panfleto separado a Declaração da Redacção do “Iskra, escrita por Lénine. Nela sublinhava-se a premente necessidade da fundação de um partido revolucionário, indissoluvelmente ligado ao movimento operário (Idem, p. 76).

            O primeiro número do jornal saiu dezembro de 1900. “O jornal trazia em epígrafe as seguintes palavras, retiradas da resposta dos dezembristas e Púchkine: “Da centelha acender-se-á a chama!””.

O Iskra ocupava-se de todas as questões econômicas e políticas actuais, do movimento operário, da situação das massas populares. O jornal começou a publicar-se num momento em que na Rússia crescia o movimento revolucionário, em que nas ruas de Petersburgo, Moscovo, Kíev, Kazán, Tomsk e outras cidades se realizavam grandes manifestações sob a palavra de ordem de “abaixo a autocracia”!

A Rússia passava por um momento de grande efervescência da luta operária. E foi diante deste contexto que Lênin teve a audácia de propor a criação de um partido, que na sua concepção teria o papel de guiar e dirigir a classe operária, contribuindo para que esta efetivasse de fato a revolução. Mas qual era aparentemente o objetivo de Lênin em criar um partido único na Rússia? Neste mesmo panfleto Lênin fez a seguinte declaração:
O grande papel da classe operária da Rússia e do partido: só organizado num partido revolucionário o proletariado podia cumprir a tarefa imediata que lhe cabia – unir sob a sua bandeira todos os elementos democráticos do país e derrubar a autocracia (Apud, Idem. pp. 76-77).
           
            Contudo, foi somente com o II Congresso do Partido Operário Social Democrata Russo, que ocorreu entre julho e agosto de 1903, que o projeto de Lênin se efetivou.

A ordem de trabalhos do congresso continha vinte questões, as mais importantes das quais eram o programa do partido, a organização do partido (aprovação dos Estatuto do POSDR) a eleição do Comité Central e da redacção do Órgão Central [...] o congresso decorreu numa encarniçada luta dos iskristas consequentes, unidos em torno de Lénine, contra os “economistas”, bundistas, centristas e iskristas inconsequentes, “brandos”, partidários de Martov (Idem, p. 97).

            Apesar das controvérsias Lênin conseguiu neste Congresso aprovar o seu programa político, no qual defendia a ideia de que “a luta pela ditadura do proletariado era colocada como tarefa fundamental do partido da classe operária” (Idem, p. 98). Neste congresso as opiniões dos militantes se dividiram basicamente em duas partes, um grupo, a maioria, apresentou concordância com Lênin, e a outra parte, uma minoria concordava com Martov, que discordava da proposta de Lênin de um partido fechado e dirigido com um grupo de dirigentes profissionais. Para Martov,

O proletariado não devia lutar pelo poder enquanto não constituísse a maioria da população do país. Por isso não necessitava de um partido combatente e revolucionário, necessário para garantir a hegemonia da classe operária e a vitória da ditadura do proletariado (Ibdem, pp. 100-101).
           
            Finalmente o grupo que se colocou ao lado de Lênin, denominado por eles de revolucionários consequentes, que eram a maioria (em russo bolchinstvó), passaram a se denominar bolcheviques, tendo Lênin em sua direção. O outro grupo, uma minoria (em russo menchinstvó) passaram a ser denominados de mencheviques.

Bolchevismo e marxismo

Bom, de forma sintética podemos conhecer a origem do bolchevismo. Agora, é preciso aprofundar a análise sobre o que é o bolchevismo, que é onde se encontra o maior problema da história desta concepção. Vimos que o bolchevismo foi criado nos princípios políticos e ideológicos de Lênin. Portanto, para compreender o que ele foi, o que se tornou e as deformações que sofreu é necessário, primeiro compreender os princípios que norteiam a sua existência, que só podem ser compreendidos a partir do próprio pensamento de Lênin.
            Lênin (1981, p. 15) afirma que “o bolchevismo surgiu em 1903 fundamentado na mais sólida base da teoria do marxismo”.Sendo o marxismo a referência para o bolchevismo, é preciso, no entanto, entender o que é o marxismo. Com isso podemos ter elementos suficientes para compreender o que é o bolchevismo.
            Uma obra que contribui sobremaneira para compreender o que é o marxismo é “Marxismo e Filosofia” de Karl Korsch[3]. Nesta obra o autor apresenta um estudo rigoroso da história do marxismo, compreendendo que para isso era necessário aplicar o materialismo histórico-dialético ao próprio marxismo. Com este estudo Korsch percebeu que a história do marxismo percorreu três períodos até a atualidade. Segundo ele,

A primeira começa por volta de 1843 (na história das ideias, com a Crítica da Filosofia do direito de Hegel) e chega ao fim com a Revolução de 1848 (na história das ideias, com Manifesto Comunista). A segunda se inicia com a sangrenta repressão ao proletariado parisiense em junho de 1848, seguida pela liquidação de todas as organizações e tendências emancipadores da classe operária, “numa época de atividade industrial febril, de descalabro moral e de reação política” magistralmente descria por Marx na Mensagem inaugural de 1864. Estenderemos sua duração até a virada do século porque não se trata, aqui, da história do proletariado em geral, mas da evolução interna da teoria de Marx em suas relações com a história do proletariado e, por isso, deixamos de lado fases de menor importância (fundação e declínio da Primeira Internacional; episódio da Comuna; confronto entre lassallianos e marxistas; lei anti-socialista; sindicatos; fundação da Segunda Internacional). A terceira vem dessa época aos nossos dias e se estende até o futuro ainda indeterminado (KORSCH, 2008, pp. 37-38).

            O que Korsch conclui é que o marxismo, desde a sua origem, acompanha o movimento revolucionário do proletariado, fazendo deste a sua expressão genuína e autêntica. Por isso ele definir o marxismo como “expressão teórica da ação revolucionária do proletariado” (KORSCH, 2008, p. 148). Este estudo de Korsch foi fundamental para observar que durante a sua história o marxismo sofreu diversas deformações. Isso provocou a emergência de um pseudomarxismo, ou seja, concepções que dizem representar o marxismo, porém, fazem desaparecer os seus princípios fundamentais, ou seja, o de ser expressão teórica do proletariado revolucionário. Se isso acontece no entanto, não se trata mais de um marxismo e sim de um falso marxismo.
            Marx, portanto, foi o primeiro a organizar teoricamente a luta travada pelo proletariado contra os seus exploradores, como colocou Kosch (2008). Ele representa a fase autêntica do marxismo, e por autêntico, entende-se por ser representante teórico da luta revolucionária do proletariado. O seu principal objetivo era descobrir como que a dinâmica da luta de classes no interior do capitalismo poderia levar ao processo que desembocaria na transformação social e instituição de uma sociedade pautada pelo autogoverno dos produtores (MARX, 1986).
            Foi por isso que dedicou boa parte de sua vida ao estudo do capitalismo, dando origem a uma das suas mais importantes obras, O Capital.Ao demonstrar a transitoriedade do capitalismo Marx encontrou no proletariado a força transformadora que colocará fim à sociedade de classe e a efetivação da emancipação humana. O proletariado é a classe potencialmente revolucionária por ser a única capaz de desenvolver uma consciência revolucionária, no sentido de se efetivar a emancipação humana. Essa consciência, no entanto, é consequência da exploração que sofre nos locais de trabalho, diante da qual consegue superar as ilusões e limites que burguesia impõe à sua própria consciência. É através da luta que sua consciência avança e pode atingir um aspecto revolucionário. Nesse sentido que Marx coloca que “sua luta contra a burguesia começa com sua própria existência” (2003, p. 53). A grande questão está, em como a classe operária fará isso. Esta questão é de fundamental importância para entender o bolchevismo.
            A Comuna de Paris de 1871 se tornou indispensável para compreender esse processo. Ela representa a primeira tentativa da classe operária em efetivar o seu projeto de sociedade. Com a Comuna de Paris o marxismo dá um passo adiante na luta pela emancipação humana, deixando definitivamente claro que a emancipação do proletariado será obra dos próprio proletariado. Isso significa que a sua luta deve estar inteiramente em suas mãos, não delegando a outros esta tarefa. Como o proletariado demonstrou na Comuna de Paris de 1871, o seu primeiro ato histórico deve ser a abolição do Estado e concomitantemente, da propriedade privada dos meios de produção.
            Bom, com essa breve análise do marxismo podemos entender como este concebe a luta do proletariado bem como o processo que deve percorrer na busca pela transformação social. Agora voltemos ao nosso objetivo, ou seja, discutir o que é o bolchevismo. Vimos no início que o bolchevismo é fundamentado no pensamento de Lênin. Mas, como Lênin pensa o processo revolucionário? É o mesmo que está expresso na concepção do marxismo? Com esta discussão vamos nos aproximar da resposta à pergunta colocada no título deste artigo.
            Lênin fundamenta sua concepção no marxismo. Como colocamos anteriormente. Ele fundamenta seu pensamento em torno da ideia da ditadura do proletariado, termo utilizado por Marx em uma carta resposta ao escritor alemão Georg Weydemeyer. Segundo Lênin, na crítica que direciona a Kautsky pelas deformações que realiza do pensamento de Marx, a ditadura do proletariado

É uma questão da maior importância para todos os países, particularmente para os avançados, particularmente para os beligerantes, particularmente no momento actual. Pode dizer-se sem exageros que é a questão principal de toda a luta de classe proletária (LENIN, 1979, p. 13).

            Para observar a relação do leninismo com o marxismo, no entanto, é preciso entender o que ambas as concepções entendem por isso. Marx, como foi dito anteriormente utilizou o termo “ditadura do proletariado” uma vez em uma carta resposta dirigida a Weydemeyer. Weydemeyer havia escrito uma carta a Heinzen[4] e publicada em um periódico norte-americando, The Democrat, e esta resposta de Marx trata desta carta.  Vejamos a passagem onde ele se refere à ditadura do proletariado:

E agora, ao que diz respeito a mim, não ostento o título de descobridor da existência das classes na sociedade moderna, e nem mesmo se quer da luta entre elas. Muito antes que eu, os historiadores burgueses haviam descrito o desenvolvimento história desta luta de classes, e os economistas burgueses a anatomia econômica das classes. O que eu disse de novo foi demonstrar: 1) que a existência das classes está vinculada unicamente a fases particulares, históricas, do desenvolvimento da produção; 2) que a luta de classes conduz necessariamente à ditadura do proletariado: 3) que esta mesma ditadura só constitui a transição à abolição de todas as classes e a uma sociedade sem classes (MARX, apud IMEL, 1957, p. 47).[gripo do autor]

            Engels deixa ainda mais claro o que Marx concebia por ditadura do proletariado no prefácio que escreve para a edição inglesa de 1891 de A Guerra Civil na França. Segundo ele

Ultimamente, as palavras “ditadura do proletariado” voltaram a despertar sagrado terror ao filisteu social-democrata. Pois bem, senhores, quereis saber que face tem essa ditadura? Olhai para a Comuna de Paris: eis aí a ditadura do proletariado! (ENGELS, 1986, p. 29).
           
            A ditadura do proletariado, portanto, é reconhecido por Marx como o período em que a classe operária atinge o seu objetivo de classe, ou seja, a abolição das classes sociais e a instituição da autogestão social. Não se tratava de um ou um grupo de indivíduos que se coloca acima do proletariado, trata-se da própria classe operária em estado de autogoverno da sociedade. Como expressou o próprio Marx (1986, p. 76), “a Comuna era, essencialmente, um governo da classe operária, fruto da luta de classes produtora contra a classe apropriadora, a forma política afinal descoberta para levar a cabo a emancipação econômica do trabalho”.Nesse processo a abolição do estado se coloca como a primeira tarefa a ser cumprida. O estado nada mais é do que uma expressão do poder de determinada classe sobre outra. Como o objetivo da classe operária é a abolição das classes, então, a abolição estatal coloca-se como o seu primeiro ato histórico e sua luta. Como colocou Marx (1986, p. 69) “a classe operária não pode limitar-se simplesmente a se apossar da máquina do Estado tal como se apresenta e servir-se dela para seus próprios fins”.
            E Lênin, qual seria seu objetivo com a criação de um partido de toda a Rússia? Levar a cabo esse ato histórico do proletariado? Vejamos:O primeiro ponto a destacar é como Lênin concebia a consciência proletária. Ele concorda que a classe revolucionária é o proletariado, assim como já havia sido demonstrado por Marx anteriormente. Lenin, no entanto, concebe a classe operária destituída de uma consciência revolucionária. Ela, por si só, não teria condições de atingir uma consciência revolucionária e efetivar a transformação social.Segundo ele, o máximo que o proletariado pode conseguir chegar é a uma consciência sindical. Para ele,

A história de todos os países atesta que, pelas próprias forças, a classe operária não pode chegar senão à consciência sindical, isto é, à convicção de que é preciso unir-se em sindicatos, conduzir a luta contra os patrões, exigir do governo essas ou aquelas leis necessárias aos operários etc. (Ibdem, p. 24).
                       
É por este motivo que ele coloca como objetivo central educar a classe operária, em suas palavras: “devemos empreender ativamente a educação política da classe operária, trabalhar para desenvolver sua consciência política” (LENIN, 1978, p. 45). Na concepção de Lenin, a consciência revolucionária não emerge no interior desta classe. Ela é consequente de fora da própria classe. Segundo ele, “a consciência política de classe não pode ser levada ao operário senão do exterior, isto é, do exterior da luta econômica, do exterior da esfera das relações entre operários e patrões” (ibdem, p. 62). Mas a quem cabe levar esta consciência revolucionária ao proletariado? Segundo ele, a um conjunto de militantes profissionais. A esses militantes cabe a tarefa de ser a vanguarda do movimento operário no período de transição do capitalismo para o socialismo, sendo eles detentores de uma consciência revolucionária e a quem cabe o papel histórico de dirigir a classe operária e leva-la a atingir a posição revolucionária. O partido bolchevique seria, portanto, a reunião destes profissionais e formaria a organização revolucionária que iria dirigir o proletariado, se colocando à frente das decisões e decidindo o caminho a ser seguido.
Esta questão apontada por Lenin destoa radicalmente dos princípios fundamentais do marxismo.É daqui que emerge a profunda confusão em torno do que seja o bolchevismo. Marx já havia chamado a atenção de que “não se julga o indivíduo pela consciência que ele faz de si próprio. É preciso, pelo contrário, explicar esta consciência pelas contradições da vida material” (MARX,1977,  p. 25). É fundamental considerar esta questão, uma vez que Lênin apresenta Marx como a principal referência de seus estudos. Basta dar uma olhada em sua bibliografia para confirmar isso. Marx, às vezes, é citado em exagero. Isso, no entanto, pode confundir leitores precipitados e reforçar a idolatria de militantes de organizações políticas à figura de Lenin. O fato de Lenin citar Marx e afirmar que o utiliza como referência em seus escritos não faz dele um marxista, nem mesmo um militante revolucionário.
Esclarecido este ponto é importante observar que em Marx não há a defesa da necessidade de profissionais para guiarem a classe operária. Marx afirmou categoricamente no Manifesto (2003, p. 107) que “a emancipação da classe operária deverá ser conquistada pela própria classe operária”.Diante de tudo que já foi apresentado até aqui chegamos a duas hipóteses fundamentais em torno da concepção de Lênin: 1) ou ele não compreendeu o marxismo; b) ou ele utilizou do marxismo por oportunismo, ou seja, para atender seus próprios interesses em detrimento dos interesses do proletariado. A primeira hipótese pode ser facilmente descartada, considerando a clareza em que Marx havia exposto os princípios da luta revolucionária do proletariado, principalmente após a Comuna de Paris de 1871, onde foi rasgado de vez o véu que ocultava o papel do Estado na sociedade, e pelo fato de Lênin apresentar em suas obras um profundo conhecimento do pensamento de Marx. A segunda hipótese pode se tornar ainda mais claro na Revolução Russa de 1917, em que Lênin foi criticado abertamente por diversos militantes que apontava o seu lado opressor e formador de um novo modo de capitalismo, o capitalismo de Estado.
Por isso Lenin pensar e defender com unhas e dentes o centralismo, cujo centro de decisão e organização seria ele próprio e seus auxiliares. Desta forma, a segunda hipótese apontada anteriormente torna-se irônica uma vez que Lenin defendia que esse centralismo se tratava de uma campanha contra o oportunismo. Segundo Lenin, citado por Rosa Luxemburgo (1991, p. 49), “trata-se de forjar, mediante os parágrafos do estatuto, uma arma mais ou menos afiada contra o oportunismo. Quanto mais profundas forem as origens do oportunismo, tanto mais afiada essa arma precisa ser”.
Herman Gorter (1981, p. 39), em carta direcionada a Lenin já havia percebido isso, expressando de forma clara: “só posso ver oportunismo em sua atitude”. Um exemplo deste oportunismo foi evidenciado por Gorter ao enfatizar o papel conservador e reacionário dos sindicatos que eram proposto por Lenin - que na Revolução Russa assumiu o papel de impedir o avanço da luta do proletariado, tornando-se um empecilho da autogestão social, um instrumento da burocracia estatal contra os trabalhadores – questão já observada pelo próprio Lênin. Mas Gorter ressalta:

Você, companheiro, e a Executiva de Moscou, sabem que os sindicatos representam forças contra-revolucionárias. É o que se deduz claramente das suas teses. Apesar disso você quer conservá-los. [...] Você próprio afirma em suas teses que as organizações por fábrica devem ser e são nosso objetivo. Apesar disso você quer esmaga-las. Você quer esmagar as organizações nas quais os operários, cada operário, e, em consequência, a massa, podem chegar a ter força e o poder, e quer conservar aquelas onde a massa é um instrumento morto na mão dos dirigentes (Ibdem, pp. 43-44).

Finalmente Gorter chama a atenção de Lênin para o que de fato representa para a luta revolucionária do proletariado.

Você, companheiro, pretende levar os sociais-democratas, os independentes e outros ao parlamento e ao governo para mostrar que não passam de empulhadores. Você quer utilizar o parlamento para mostrar que não serve para nada (Ibdem, p. 70).

Lenin, no entanto, trabalhava duramente em torno de seus interesses. O partido era o seu maior objetivo, cuja característica era se manter na dianteira do movimento operário, com um chicote em uma mão e um ferro em brasas em outra. Como diz ele próprio:

Sem partido férreo e temperado na luta, sem um partido que goze da confiança de tudo que exista de honrado dentro da classe, sem um partido que saiba tomar o pulso do estado de espírito das massas e influir nele é impossível levar a cabo com êxito essa luta (19841, pp. 41-42).

O partido Lênin não escondia o lado opressor e férreo do estado que almejava constituir na Rússia. Não pestanejava em afirmar que concebia a ditadura como “um poder férreo” (LENIN, 1980, p. 45). Estava propício a qualquer coisa para defender o seu próprio oportunismo. O partido deveria ser fechado temendo a criação de um contra-poder que pudesse coloca-lo em xeque. A aqueles que caminhassem neste sentido de ser uma barreira e um incômodo, segundo ele próprio, “merecem ser fuzilados” (Ibdem, p. 174).
Para continuarmos ainda um pouco mais, torna-se, no entanto, importante observar que a discussão que realizamos até aqui esclarece uma dúvida e uma confusão existente em torno da relação entre Lênin e Marx. A concepção de ambos, que teve como consequência a sua continuação e aprofundamento por seus epígonos foi denominada de leninismo e marxismo. O leninismo teve portanto na experiência da Revolução Russa a sua principal referência. Em 1917 Lenin conseguiu efetivar o seu grande objetivo de um partido de toda a Rússia, partido esse que se denominou partido bolchevique, tendo ele à frente como um exímio ditador. A confusão é que tanto Lênin quanto seus seguidores, colocam o leninismo e o marxismo em um mesmo plano, como se fossem equivalentes e defendessem os mesmos interesses. É preciso observar, a partir do que já foi colocado, que são concepções radicalmente distintas.
O marxismo, relembrando Korsch (2008) é a expressão teórica do movimento revolucionário do proletariado. O leninismo é a expressão teórica da burocracia estatal, sendo ao mesmo tempo um defensor do capitalismo em sua forma estatal, sendo, ao invés de uma ditadura do proletariado, como concebido por Marx, defensor e agente de uma nova forma de “ditadura sobre o proletariado” (KORSCH, 2008, p. 107), ou como expressou Makhaïski (1981, p. 141):

A afirmação dos bolcheviques visando a apresentar sua conquista do poder como a ditadura, como a dominação da classe operária, de fato não é mais do que uma das numerosas fábulas que o socialismo inventou ao longo de sua história. [...] uns e outros prometem à classe operária sua dominação, deixando-a nas mesmas condições de servidão e fazendo-a coexistir com a burguesia que possui sempre todas as riquezas.

Isso fica mais claro ainda na própria concepção de Lenin que concebe a ditadura do proletariado um período em que a luta de classes ainda não tenha sido destruída, mas trata-se de um novo período da luta de classes, como ele afirma: “a ditadura do proletariado não e o fim da luta de classes mas a sua continuação em novas formas” (1974, p. 11). Essa afirmação, por si só, demonstra a enorme distância e discrepância de sua concepção com a teoria do proletariado, cuja expressão mais acabada é o marxismo.
Apesar do ferro em brasas que apontava para seus opositores, não faltou críticas e combate ao filho que Lênin gerou e criou na Rússia, o bolchevismo.Até mesmo seu comparsa na Revolução Russa, Trotsky, através do texto Nossas Tarefas Políticas,publicado em1904, já havia observado que “no esquema de Lenin o Partido substituiria a classe” (TROTSKY, apud 1981, p. 19). Apesar da defesa que Lenin professou da revolução proletária, sua concepção e a experiência que levou a cabo na Revolução Russa através do partido bolchevique denota que este não destoa de outras organizações burocráticas. Mas vejamos com mais detalhes esta questão.

O partido bolchevique

Depois de tudo que foi dito, podemos concluir que o bolchevismo é uma concepção política, uma tendência que emerge no interior da social-democracia russa. É consequente da prática do partido bolchevique cuja referência era baseada na concepção de Lenin. Contudo, precisamos ainda discutir o que é o partido bolchevique. Já vimos sobre o processo história de sua constituição, referência teórica etc. Precisamos discutir um pouco mais sobre sua prática. Assim, compreenderemos a respeito da concepção política ao qual ele dá origem, o bolchevismo. Para compreender as práticas deste partido é preciso esclarecer o que são partidos políticos?

São organizações burocráticas que visam à conquista do Estado e buscam legitimar esta luta pelo poder através da ideologia da representação e expressam os interesses de uma ou outra classe ou fração de classe existentes (VIANA, 2003, p. 12).

            O partido bolchevique era portanto, uma organização burocrática que trazia em sai essas características de um partido, isto é, se organizava sob o manto da relação entre dirigentes e dirigidos. Internamente haviam aqueles que mandavam e aqueles que deveriam obedecer. O grande mandante era Lênin, que conseguiu reunir em torno de si um conjunto de outros indivíduos que viam no partido uma forma de manter determinados privilégios em detrimento da classe operária. Esse grupo, tendo Lênin à frente, eram os exploradores e controladores da classe operária russa. O discurso que utilizavam de que representavam a classe operária era apenas uma forma de ocultar a opressão e exploração que exerciam sobre esta classe. Esse partido cultivou

A ideologia da nulidade operária, considerando os trabalhadores mera força de trabalho que têm que ser “dirigidos”, “organizados” pelo partido. O socialismo de dirigentes e dirigidos não é socialismo, mas autoritarismo burocrático. Mantém o trabalhador da linha de produção ganhando “por produção” e subordinado à chefia, nomeada pelo partido e pelo Estado (TRAGTENBERG, 1988, p. 118).

A ditadura proclamada por Lênin e muito bem realizada pelo partido bolchevique – denominada por ele de socialismo - foi agente do que Pannekoek denominou de capitalismo de estado. Segundo ele, “o que se designava por socialismo de Estado se revolveu como capitalismo de estado sobre a forma política de uma ditadura” (PANNEKOEK, 1973, p. 19). O bolchevismo se configurou de acordo com a concepção de Lênin, que defendia a organização da classe operária por um grupo de profissionais, de intelectuais, que eram portadores de uma consciência revolucionária. O que confunde os seus seguidores é que ele não deixou claro que tipo de consciência revolucionária era esta. E isso confundiu por demais militantes políticos após 1917. Esta consciência revolucionária tratava-se de uma consciência da classe intelectual, ou da intelligentsia, como denominou Makhaïski (1981), sendo ao mesmo tempo expressão da consciência burguesa.Era uma consciência revolucionária por colocar abaixo o capitalismo privado, transformando-o em capitalismo de estado. Como colocou Pannekoek (1973, p. 134) “esta burocracia estatal, como uma nova classe dominante, dispõe diretamente do produto, portanto, da mais-valia, ao passo que a classe operária é explorada como assalariada”.A autogestão social certamente não era o objetivo de Lenin, como aponta Arthur Rosenberg (1986, p. 302)

O objetivo devia ser o de fundar, após a queda do tzar, uma república russa sob a forma da “ditadura democrática dos operários e camponeses”. Tal república russa seria também um Estado burguês fundado na propriedade privada burguesa.

O bolchevismopassou a defender, assim, relações estabelecidas sob o manto do capitalismo, fazendo do partido o meio de dirigiros negócios de uma minoria que se organiza em torno de um partido onipotente. Desta forma,

O bolchevismo ligava à direção unipessoal da empresa, por um administrador nomeado pelo Estado, a utilização do método de Taylor de organização do trabalho e o pagamento por produtividade individual. Enfatizava o estudo e o emprego do que, na sua opinião, havia de científico no taylorismo (TRAGTENBERG, 1988, p. 86).

Para usufruírem deste privilégio que a exploração dos trabalhadores lhes oferece, é que almejavam o poder de Estado, objetivo que realizaram em 1917 ao tomarem o poder estatal russo através do partido bolchevique. Isso fica mais claro na proposta de Lenin em nacionalizar os bancos russos e não querer a sua abolição. Por isso ele afirmar que “os grandes bancos constituem o ‘aparelhos do Estado’ de que necessitamos para realizar o socialismo” (LENIN, 1976, p. 94). Isso lhe daria de fato o dinheiro necessário para viver como um burguês sempre sonhou, mergulhado no vil metal. Daí a importância de defenderem e propagarem a ideologia da representação, questão de fundamental importância para as organizações burocráticas.
Importante ressaltar que o partido bolchevique, apesar de suas pretensões teóricas revolucionárias, é um órgão burguês, na medida em que é um Estado em miniatura, cuja finalidade é tomar o poder, não destruí-lo (Ibdem, p. 115). Isso explica o caminho que seguiu a Revolução Russa, guiada e determinada por seus interesses. A concepção bolchevique, portanto, considera que ao proletariado não cabe outra posição, senão, se convencer de sua ignorância e de que os seus dirigentes estão corretos, mesmo que a direção que dão das coisas seja a manutenção brutal da exploração sobre ela, dito de outra forma:

A Revolução Russa só pode triunfar porque o Partido Bolchevique, como uma unidade fechada e altamente disciplinada, dirigiu as massas, e porque a clara visão e a confiança inquebrantável de Lenin e seus amigos indicaram o caminho correto [...] o que importa são os dirigentes do partido, revolucionários sagazes e experimentados; as massas não precisam mais que o convencimento de que o partido e seus dirigentes têm a razão (PANNEKOEK, 1973, p. 134).

O partido bolchevique, para proteger o seu interesse de manter em suas mãos o estado e a direção da classe operária, se colocavam contra a autonomia da classe operária. Permitir que a classe operária seguisse seu próprio rumo e tomasse em suas mãos a organização de sua luta, era o maior perigo para o partido, pois este poderia ser destruído, assim como seus privilégios e o poder que tanto almejava. Por isso deveriam lutar para manter a classe operária sob o seu controle. Segundo Tragtenberg (1988, p. 82), “é que o Partido Bolchevique queria não só o monopólio da revolução, mas também o poder em seus vários níveis, para aniquilar uma revolução que seguia uma via autônoma”.

Considerações Finais

            Considerando, portanto, a discussãorealizada inicialmente, podemos concluir que o bolchevismo é uma concepção burocrática pautada na prática e ideologia da representação, e se fundamenta na prática do partido bolchevique na Rússia. Esta concepção não considera a tarefa histórica do proletariado como agente da transformação, delegando esta a um grupo de burocratas que se organizam em torno do Estado, aos quais cabem a tarefa de dirigir este processo. Nesta concepção nega-se a autonomia da classe trabalhadora em detrimento do dirigismo do partido e de outras organizações burocráticas, a exemplo dos sindicatos.
            Para o bolchevismo a revolução só pode ser alcançada através do poder estatal. Nesse sentido, nega-se a sua destruição e defende-se a submissão do proletariado às suas ordens. Esta concepção assume, portanto, a defesa de uma sociedade dividida em classes sociais, a manutenção da relação dirigentes e dirigidos. Não há espaço nesta concepção para conceber a emancipação humana. Esta, pelo contrário, é convertida em emancipação do partido que assume o poder do estado e não da humanidade, cujo pressuposto é a abolição do capitalismo de seu mantenedor, o estado.
            O bolchevismo, portanto, do ponto de vista do proletariado, é uma concepção a ser combatida. A emancipação humana pressupõe a sua superação. Esta é um entrave para o avanço da luta revolucionária, e como tal, se colocará como um empecilho para a autogestão social, uma vez que em um processo revolucionária pode querer dirigir a classe operária. E neste processo a classe operária terá que esmaga-lo e destruí-lo.
É preciso ter clareza, portanto, quebolchevismo não é o mesmo que marxismo. São concepções radicalmente diferentes. O termo marxismo-leninismo, marxismo bolchevique, social-democracia ou algo semelhante, é nada mais do que fruto de uma confusão e de concepções deturpadas sobre o que é o marxismo e o que é o bolchevismo.Alguns podem dizer que ele rompeu ou que abandonou algumas teses do marxismo. Pannekoek (1973, p. 128), neste sentido é muito claro: “O bolchevismo russo não pode abandonar o caminho do marxismo, pois nunca foi marxista”. Em síntese, a luta pela transformação humana pressupõe também a superação desta ideologia, o aprofundamento e desenvolvimento do marxismo e o combate do bolchevismo.



Referências Bibliográficas

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______. Um Marxismo Vivo. Porto Alegre: Barba Ruiva, 2007.


** Texto publicado no número 16 da Revista Enfrentamento em 2014. Para acessar este número da revista, clique em: http://www.enfrentamento.net/anteriores.html 
*Doutor em história pela Universidade Federal de Goiás. Professor do programa de história da Universidade Estadual de Goiás.
[1]Para mais detalhes deste jornal ver os últimos capítulos de “Que Fazer?” (LENIN, 1978).
[2] Além do jornal Lênin elaborou conjuntamente uma revista que a nomeou de Zariá.
[3]Outra grande contribuição para compreender o que é o marxismo está na importante análise de VIANA (2007, 2008, 2012).
[4]Karl Heinzen (1809-80) Médio e democrata burguês. Diretor de vários periódicos germanoamericanos. Opositor a Marx e Engels. Pequeno burguês de pouco conhecimento, que sustentava que o poder despótico dos príncipes alemães era a raiz de todo o mal; daqui advinha o seu apelido de “o matador de príncipes”. Considerava a “luta de classes” como uma ideia absurda dos comunistas (Instituto Marx-Engels-Lenin, 1957, p. 47)