por: Edmilson Marques
O Brasil está sendo tomado no atual momento por um conjunto de manifestações
espontâneas. O que será que vem provocando esse fenômeno que a cada dia está
tomando proporções cada vez maiores (se manifestando em vários países e com
quantidade crescente de pessoas) e mais radicais (do enfrentamento direto e
declarado com o estado)?
Mas o que é espontaneidade? Esta é parte da natureza humana. Ela se expressa de
diversas maneiras no cotidiano de nossas vidas. É a expressão do desejo humano em
transformar o seu cotidiano para que este possibilite o atendimento de suas
necessidades básicas, como comer, beber, se vestir, morar, se locomover sem
dificuldades, criando, assim, uma realidade onde possa desenvolver naturalmente
suas diversas potencialidades. A liberdade, no entanto, é parte fundamental desse
processo, pois, só pode haver espontaneidade se houver liberdade para se
expressar e, desta forma, torna-se também, expressão de sua natureza. Assim,
ser espontâneo é demonstrar através de ações práticas a potencialidade e
capacidade criativa, atuando na transformação da realidade, criando e gerando o
novo, porém, em liberdade.
A espontaneidade, no entanto, pode ser limitada em consequência de ações
controladoras. Isso ocorre quando as relações sociais estabelecidas entre os
seres humanos inibem e limitam ações individuais e coletivas, impedindo o
desenvolvimento natural de suas diversas potencialidades, a exemplo do que
ocorre nas escolas, em que uma criança não cria, mas reproduz o conhecimento
criado por outro, através da imposição realizada pela burocracia escolar.
Quando isso ocorre um novo sentimento é gerado, o descontentamento. O
descontentamento é a demonstração de que alguma coisa existente na sociedade
está limitando ou dificultando o atendimento das necessidades básicas dos seres
humanos, incluindo aí a liberdade. O descontentamento, portanto, expressa o
desejo de romper com estes limites e dificuldades, e agir com o objetivo de
suprimí-los. Ao agir com este objetivo o indivíduo consegue novamente
retomar a potencialidade criativa em suas mãos, perdida outrora,
indispensável para superar esses limites que lhes são impostos.
No capitalismo, no entanto, a ação
espontânea é parte do cotidiano de apenas alguns poucos indivíduos, dos
capitalistas e de uma parcela de seus auxiliares, uma minoria, que têm em suas
mãos a possibilidade de determinar como a sociedade deve ser organizada, e é
nesse sentido que a burguesia conseguiu criar um mundo à sua imagem e semelhança.
Um mundo inferior, um mundo vil, que gira em torno da produção, compra e venda
de mercadorias, um mundo coisificado, onde o ser humano é transformado em uma
coisa para atender aos interesses daqueles.
No entanto, mesmo sendo controlada e
privilégio de uns poucos, a espontaneidade, por ser parte da natureza humana,
tende a se expressar na ação daqueles que são explorados e oprimidos. E é nesse
sentido que atualmente o mundo, não só o Brasil, vem sendo tomado por
manifestações espontâneas que aglomeram milhares de pessoas com o mesmo
propósito, ou seja, o de suprimir determinadas questões sociais que lhes
provocam o descontentamento. No Brasil, os meios de comunicação estão
divulgando que essas manifestações se resumem à reivindicações relacionadas à
passagem de ônibus, que buscam denunciar o descaso do estado com a educação,
saúde, segurança etc. O estopim em várias destas manifestações de fato tem uma
relação com estas questões, porém, há algo mais profundo que é preciso ser
revelado.
Ao analisar a história do capitalismo,
vamos perceber que toda a sua história é marcada por manifestações espontâneas,
hora com maior, hora com menor intensidade. Os motivos aparentes que fazem emergir
a maioria destas manifestações que ocorreram e vem ocorrendo atualmente, no
entanto, diferem em relação ao que reivindicam. Atualmente vemos estourar no
Brasil, por exemplo, manifestações que reclamam da cobrança, e outros do preço,
de passagens de ônibus, mas há também manifestações de trabalhadores rurais, da
própria polícia que clamam por melhores salários etc. A razão de ser destas
diversas manifestações, no entanto, não se resume à reclamação de necessidades
imediatas, embora seja essa a sua expressão aparente, mas, a algo mais
profundo. Desta forma, a explicação para as manifestações espontâneas deve ser
buscada na forma como a sociedade atual está organizada.
O capitalismo é uma sociedade dividida em
classes sociais, e como tal, é organizada para atender aos interesses de uns
poucos em detrimento da maioria. Alguns são privilegiados enquanto outros pagam
pelo privilégio daqueles. É por isso que há indivíduos que podem ser portadores
de meios de transportes individuais, havendo inclusive aqueles que nunca, se
quer, entraram em um ônibus “coletivo”; é por isso também que há aqueles que
pela exploração que exercem sobre os trabalhadores conseguem viver desfrutando
das riquezas produzidas; outros recebem salários exorbitantes enquanto a
maioria esmagadora recebe o mínimo para se manter vivo. Em síntese, o
capitalismo foi organizado de acordo e para atender aos interesses da
burguesia, e esta cede parte de seus privilégios à burocracia estatal para
atuar na manutenção desta sociedade.
Podemos observar essa forma de ser do
capitalismo nos locais de trabalho. O trabalho é o meio essencial que
utilizamos para nos manter vivos. No entanto, foi convertido pela burguesia
como o meio para aumentar e permitir os seus privilégios. É por isso que a
maior parte dos trabalhadores dedica sua vida ao trabalho, mas quem vive em
melhores condições e vai se enriquecendo cada vez mais são os patrões, acompanhados
de perto por aqueles que os auxiliam controlando e oprimidos os trabalhadores,
a burocracia. Devido a isso nunca veremos pelas ruas patrões se manifestando,
utilizando-se de coquetel molotov, em confronto direto com a polícia, nem
reivindicando tarifas menores das passagens de ônibus ou reclamando por
melhores salários e melhores condições de trabalho. E isto não vai ocorrer pelo
fato destas questões e esta sociedade não ser preocupação para eles e por ser
eles a razão de ser desta situação.
Desta forma, o modo como se produz as
riquezas existentes e a maneira como esta é distribuída, é a razão de ser das
manifestações espontâneas. Uma vez que as riquezas produzidas são apropriadas
por poucas pessoas, pelos capitalistas, isso cria uma sociedade em que a
maioria é destituída destas riquezas e sofrem pelo não acesso a elas. Estando a
maior parte da sociedade (as classes oprimidas e exploradas) destituída destas
riquezas, logo, suas necessidades básicas se tornam um fardo, a liberdade
inexistente, e a consequência é a instalação de um descontentamento
generalizado. Assim se institui uma sociedade em que este descontentamento
generalizado faz emergir as diversas manifestações espontâneas, que hora ou
outra explodem como o fogo no cerrado, que busca queimar o velho e preparar o
terreno para uma nova vida, onde a liberdade seja parte da vida cotidiana e a
riqueza produzida, a realização humana.
As manifestações espontâneas expressam,
desta maneira, o interesse da população oprimida e explorada de superar esta
sociedade. Se o descontentamento inexistisse, não haveriam pessoas se
mobilizando e gritando raivosamente por uma vida diferente desta. Assim, uma
das questões que emerge com essas manifestações atuais é que representam em si
a crítica à burocracia, já que não são organizadas nem mesmo guiadas por
integrantes de partidos políticos. É por isso que vemos os representantes do
estado assustados com esse tipo de movimento, por não saberem com quem
negociar, já que no limite de suas consciências, próprio dos integrantes de
partidos políticos, só conseguem pensar uma determinada organização tendo à sua
frente uma vanguarda, os representantes.
Quando a espontaneidade é expressada por
manifestantes que buscam representarem a si mesmos, sem delegarem a outro a sua
própria representatividade, isso gera uma confusão na cabeça dos burocratas,
até mesmo dos intelectuais mais esclarecidos, o que leva o estado a justificar
a repressão que exercem, expressando que os manifestantes são baderneiros,
vândalos e um conjunto de outros adjetivos que utilizam para desqualificar a
sua espontaneidade e fortalecer a falsa ideia da necessidade de representantes.
As manifestações espontâneas, no entanto,
não são frutos de articulações de partidos políticos e se organizam no processo
de desenvolvimento da luta empreendida. Nestas não há alguém determinando o que
fazer nem para onde seguir. As manifestações espontâneas são integradas por
pessoas que tomaram enfim, em suas mãos, o destino de sua própria vida; é a
crítica prática a diversas questões consequentes da forma como esta sociedade
está organizada.
É preciso ainda discutir a ideia de “pacificidade”
que vem sendo aclamada e dirigida à população pelos meios oligopolistas de
comunicação. Podemos perguntar: qual o motivo e interesse pela “pacificidade”
das manifestações? Pacífico, segundo um dicionário famoso, significa: amigo da
paz; tranquilo, pacato; aceito sem discussão ou oposição. Já ser espontâneo, significa:
voluntário, que se desenvolve sem a intervenção de outro. A espontaneidade
exige atuação, no sentido de deixar a inércia de lado para criar com suas
próprias mãos o destino de sua própria vida sem a intervenção de outro; é participação,
porém, perpassa pela oposição quando há limitações para seu desenvolvimento.
A emergência de uma manifestação
espontânea é sinal que os indivíduos não estão mais suportando a situação em
que estão vivendo. E nesse estado é impossível tratar com pacificidade aqueles
que estabelecem a repressão e a opressão como pressuposto das relações sociais.
Desta forma essa concepção que defende a pacificidade caminha em sentido contrário
à de espontaneidade. Assim, o que os meios oligopolistas de comunicação estão
defendendo é o recuo e limitação das manifestações espontâneas, o seu controle.
A defesa da pacificidade não possibilita a
criação do avanço da luta e se limita a reproduzir a mesma sociedade pautada na
opressão e exploração de uma minoria sobre a maioria. Com isso os meios
oligopolistas de comunicação, ao invés de contribuir com o avanço das lutas
espontâneas, no sentido de motivá-las a atingir a radicalidade ao ponto de
colocar a ordem capitalista em xeque, o que fazem é se colocarem como
limitadores da ação coletiva, o que demonstra estarem do lado da burguesia e
também ao lado do estado.
A radicalização crescente das manifestações, no entanto, é uma resposta à
intensificação da exploração capitalista. Com a intensificação da exploração,
consequentemente, houve a necessidade de intensificar a repressão e o controle
por parte do estado. Desta forma, de um lado o estado vem se utilizando da
repressão cada vez mais brutal para manter a ordem estabelecida pelo
capitalismo. Mas de outro, em resposta a essa repressão vem ocorrendo a emergência
das manifestações espontâneas, que, sem as poderosas armas empunhadas pelo
estado, respondem com uma força equivalente através da união coletiva,
movimentando-se a passos largos, tornando-se um só e se levantando como um
gigante diante do estado, agora, não mais pedindo sua permissão para passar,
pois solicitar dele o seu consentimento, é o mesmo que ceder às suas ordens e
correr o risco de ser obrigado a virar as costas para ser chicoteado. O
sentimento comunitário é, desde sempre, a força principal, necessária para o
progresso da revolução (PANNEKOEK, 2007, p. 159).
É claro que esse processo de luta contra o
capitalismo não vai ocorrer de forma pacífica. O estado utilizará de todas as
suas forças (armadas até os dentes) para defender esta sociedade, e é por isso
que as manifestações espontâneas têm mostrado que o meio para se efetivar a
transformação social só será possível através de uma atuação conjunta
radicalizada, sem ser pacífico com a situação instituída, como criticam os
meios oligopolistas de comunicação. Assim, a exploração realizada nos locais de
trabalho e o tratamento repressor que o estado oferece à população são os
motores, agora, com uma intensidade ainda maior, em todos os cantos do mundo,
de todas as manifestações espontâneas que vem estourando em todas as partes do
globo terrestre.
A possibilidade da transformação social
começará a se colocar, no entanto, quando as diversas manifestações espontâneas
que emergem fora dos locais de trabalho eclodirem simultaneamente à luta
espontânea do proletariado, momento em que se abre a possibilidade de
ultrapassarem o campo das reivindicações imediatas e efetivar uma greve geral e
de ocupação ativa. Os operários
Sabem que para conseguir sua própria emancipação, e com ela essa
forma superior de vida para a qual tende irresistivelmente a sociedade atual,
por seu próprio desenvolvimento econômico, terá que enfrentar longas lutas,
toda uma série de processos históricos que transformarão as circunstâncias e os
homens. Eles não têm que realizar nenhum ideal, mas simplesmente liberar os
elementos da nova sociedade, que a velha sociedade burguesa agonizante traz em
seu seio (MARX, 1986, p. 77).
Um dos limitadores daquelas manifestações
é que se restringem, por exemplo, a reivindicar melhores salários, tarifas
menores das passagens de ônibus, melhores condições de trabalho, etc. Pautar a
luta pela revindicação só adia o processo que levará à transformação social.
Tanto é que quando essas passam e os manifestantes conseguem dos capitalistas o
consentimento de suas reivindicações, voltamos a receber salários e ser controlados
e explorados nos locais de trabalho, continuamos pagando passagens de ônibus e
continuamos trabalhando para o patrão sob a supervisão do burocrata. Ou seja, o
capitalismo continua existindo, assim como as relações de opressão e
exploração.
As manifestações espontâneas que ocorrem
fora dos locais de trabalho, no entanto, estão se tornando cada vez mais
radicais e podem abrir brechas no capitalismo para dar início a um processo
revolucionário. Isso pode ocorrer quando a luta espontânea dos operários se
instalar simultaneamente a aquelas. Desta forma a sociedade será tomada pela
luta declarada e aberta das classes exploradas e oprimidas, momento em que juntam
suas forças contra seus opressores e exploradores. É neste momento que se
coloca a possibilidade da passagem das lutas autônomas dos operários para as
lutas autogestionárias.
Quando as lutas autônomas são substituídas pelas lutas
autogestionárias, o conflito se torna mais grave, a guerra civil oculta se
transforma visivelmente em guerra civil aberta e ambos os lados radicalizam
suas ações e a vitória da classe capitalista ou da burocracia significa a
contra-revolução, enquanto que a vitória da classe operária significa a
instauração da autogestão social (VIANA, 2008, p. 29).
As diversas manifestações espontâneas que
vem surgindo em todo mundo, portanto, é o anúncio de uma nova era, o começo de
uma nova história, a ser escrita pelas mãos dos trabalhadores, que erguerão uma
sociedade que será gerida por eles próprios. Concluíram que a extinção da
miséria, da fome, da pobreza, das classes oprimidas e exploradas, em síntese,
do descontentamento histórico que perdura até a atualidade, só pode se tornar
uma realidade com o fim daquele que o produz, ou seja, com o fim do capitalismo
e seu representante direto, o estado. Esse fim, no entanto, só poderá ser obra,
daqueles que são oprimidos e explorados nesta sociedade. As manifestações
espontâneas estão, tão somente, anunciando que este fim se aproxima.
Bibliografia
MARX, Karl. A Guerra Civil na França. São
Paulo: Global, 1986.
PANNEKOEK, Anton. A Revolução dos Trabalhadores.
Porto Alegre: Barba Ruiva, 2007.
VIANA, Nildo. Manifesto Autogestionário. Rio
de Janeiro: Achiamé, 2008.
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