A Comuna de Paris de
1871**
Edmilson Marques*

Em
meados de março de 1871, a classe operária e as demais classes oprimidas de
Paris e de alguns centros secundários da França já viviam sob o abominável
poder e o ínfimo interesse da classe burguesa. A burguesia encontrava no estado
um escudo que a protegia e ao mesmo tempo impedia a radicalização da luta de
classes. Trata-se aí do contexto em que o capitalismo já demonstrava como
outrora a sua face mais nua e perversa. Como colocou Marx ainda naquele
período: “A ‘sociedade atual’ é a sociedade capitalista, que existe em todos os
países civilizados, mais ou menos livre de complementos medievais, mais ou
menos modificada pelas particularidades do desenvolvimento histórico de cada
país, mais ou menos desenvolvida (MARX, 1961, p. 223).
Era
neste contexto que se encontrava a classe operária de Paris em março de 1871,
ou seja, submetida à repressão estatal e à exploração burguesa. A única
alternativa que lhe restava para se livrar daquela situação era assumir a
responsabilidade de gerir sua própria vida tomando em suas mãos o controle da
sociedade. Assim, “em meio às fraquezas e traições das classes governantes, os
proletários da capital compreenderam que chegara sua hora de salvar a situação,
tomando nas mãos a direção das questões públicas” (LISSAGARAY, 1991, p. 100). A
classe operária, então, se coloca declaradamente à luta aberta e declarada
contra seus opressores e exploradores. Marx (1986, p. 63) observa que “a
gloriosa revolução operária de 18 de março apoderou-se indiscutivelmente de
Paris”. Não pestanejaram em assumir o controle de sua própria vida e
imediatamente desenvolveram uma nova forma de organização social.
No
dia seguinte ao 18 de março foi constituído o Comitê Central, que segundo os
próprios comunardos, como eram chamados os integrantes da Comuna, não se
tratava propriamente de um governo mas de uma
Sentinela do povo,
como o Comitê de vigilância e organização, encarregado de velar para que não
retirasse ao povo, por surpresa ou por intriga, o fruto de sua vitória;
encarregado de organizar a manifestação definitiva da vontade popular, isto é,
a eleição livre de uma assembleia que represente não apenas as ideias, mas
também os interesses da população parisiense (DUNOIS, p. 62)
O Comitê Central seria inferiorizado
oito dias depois ao ser submetido à Comuna[1], que seria formada por delegados
eleitos por sufrágio universal em cada um dos 20 distritos da grande Paris. O
Comitê Central decretara que haveria um conselheiro para cada vinte mil
habitantes e fração de dez mil (LISSAGARAY, 1991, p. 111). No dia 26 de março
as eleições são realizadas e Paris passa a ser reorganizada segundo os princípios
da Comuna. A partir daí os operários - como expressaram em uma publicação no
dia 29 de março, através da qual anunciaram a constituição da Comuna - passaram
a ser “os senhores de vossos destinos” (DUNOIS, 1968, p. 64).
A
eleição dos integrantes da Comuna por sufrágio universal foi um processo
radicalmente distinto do processo eleitoral estabelecido pela democracia
burguesa, uma vez que os eleitos “eram responsáveis e substituíveis a qualquer
momento” (MARX, 2011, p. 17). Segundo Viana (2011b, p. 09),
O sufrágio
universal, aparentemente, é semelhante ao processo da democracia burguesa,
representativa, mas possui, no caso da auto-organização comunal, um caráter
totalmente distinto. Não se trata de eleições parlamentares, com períodos de
mandatos fixos, com os eleitos recebendo salários privilegiados e adquirindo
poder e estabilidade. Na verdade, o sufrágio universal significa a supremacia
da população sobre os delegados eleitos, cabendo a ela a escolha. Porém, esta
escolha remete aos demais princípios – e são estes que mostram a diferença
radical em relação à democracia representativa. O princípio da removibilidade
coloca que qualquer delegado pode ser removido a qualquer momento e o princípio
da substitubilidade deixa claro que pode ser substituído por outro. A decisão
sobre a remoção e substituição é realizada pela população e assim esta escolhe,
remove, substitui sempre que for necessário, sempre que o delegado não
corresponder ao esperado e não seguir as diretrizes às quais deve se submeter.
Daí vem o princípio da responsabilidade, o mais importante de todos, o que
significa que o delegado escolhido não tem autonomia e nem pode criar
interesses próprios, tal como na democracia burguesa, e é o que garante a
decisão coletiva das assembleias em substituição à autonomização dos eleitos.
A
revogabilidade dos delegados eleitos a qualquer momento era uma forma de impedir
o desenvolvimento de relações de dominação, da burocracia, pois eram submetidos
aos interesses coletivos, sendo seu papel o de executar as medidas indicadas
pelos operários em assembleias. Eram poucos os que acreditavam que a classe
operária poderia mostrar para a humanidade o caminho para se efetivar a
supressão das classes sociais, “e sua notável atuação política e militar
parecia levar a Europa à dúvida sobre se o que via era uma realidade ou
simplesmente os sonhos de um passado remoto” (MARX, 1986, p. 63).
Não
se tratava de um sonho, era a mais pura realidade aquilo que os operários estavam
efetivando, ou seja, o esboço de uma sociedade na qual definitivamente se
concretizava a emancipação humana, “a abolição da própria dominação de classe”
(MARX, 1986. p. 72). Na luta contra os seus rapinadores buscaram destruir a
expressão mais poderosa da opressão, o estado. Como colocou Bakunin (2011, p.
37) o ato histórico empreendido pela Comuna “foi uma negação audaz, bem
pronunciada, do Estado”. A Comuna, ao abolir o exército permanente, a polícia,
a burocracia e a magistratura, além do seu aliado, o clero, realizou a abolição
do Estado (VIANA, 2011a, pp. 64-65). Com isso a Comuna destruiu “os dois
grandes fatores de gastos: o exército permanente e a burocracia do Estado”
(MARX, 1986, p. 75). Não temos muito espaço aqui para apresentar ao leitor com
detalhes todas as ações empreendidas pela Comuna[2] mas apresentaremos algumas
das formas sociais que assumiu a sua atuação que nos possibilita ter uma ideia
de como se configurou.
A
pós a supressão do estado e instituição do autogoverno dos produtores os
Comunardos trataram de iniciar a reorganização de Paris segundo princípios pautados
pelo interesse coletivo da classe operária. A segurança nacional passou para as
mãos dos próprios operários ao abolirem o exército permanente e a polícia; empreenderam
a abolição da concepção burguesa de estrangeiro, admitindo todos que queriam
integrar a Comuna; decretaram a separação entre a igreja e o estado e
expropriaram seus bens devolvendo-os aos produtores de Paris, obrigando os
padres a voltarem, como faziam os seus antepassados, a viverem das esmolas de
seus fiéis; apesar da Comuna não ter tido tempo de avançar com o seu projeto de
ensino, foi estabelecido que as escolas fossem abertas à população através da
instituição do ensino público sem a interferência da igreja e do estado, e pautadas
pelo caráter essencialmente socialista e de instrução integral; os funcionários
judiciais foram despojados de sua independência e convertidos em funcionários
eletivos, responsáveis e demissíveis a qualquer momento; estabeleceu-se que
qualquer servidor público, incluindo os membros da Comuna, recebesse salário
igual ao de um operário; suprimiram o trabalho noturno para os padeiros;
suprimiram os impostos sobre as classes oprimidas e exploradas; instituíram aos
patrões a proibição de baixarem os salários e impor multa sobre qualquer que
fosse o pretexto; todas as oficinas e fábricas fechadas foram entregues aos
operários; realizaram a queima de guilhotinas em praça pública. Em síntese, a
Comuna estabeleceu uma transformação radical nas relações sociais, incluindo,
inclusive, uma profunda mudança cultural, de consciência, valores, sentimento,
etc., como pode ser notado como exemplo na decisão de se demolir a coluna imperial
da Praça Vendôme[3].
Já não havia
cadáveres no necrotério nem assaltos noturnos, nem simples furtos. Pela
primeira vez desde os dias de fevereiro de 1848, podia-se andar com segurança
pelas ruas de Paris, e isso sem que existisse polícia de qualquer espécie. Já não
se ouve falar – dizia um membro da Comuna – de assassinatos, roubos e
agressões” (MARX, 1986, p. 83).
A
Comuna foi, portanto, a primeira experiência de luta revolucionária levada a
cabo pela classe operária; a manifestação política mais acabada desta classe através
da qual demonstrava concretamente o seu projeto de sociedade, cujas
características se fundamentaram no autogoverno dos produtores, na autogestão
social. Segundo Marx, “a Comuna era, essencialmente, um governo da classe
operária, fruto da luta de classe produtora contra a classe apropriadora, a
forma política afinal descoberta para levar a cabo a emancipação econômica do
trabalho” (MARX, 1986, p. 76).
Aquela
experiência perdurou entre 18 de março e 28 de maio. A sua destruição foi realizada
pelo estado em apoio à burguesia através de um massacre que teve início no dia
21 de maio e terminou no dia 28 daquele sangrento mês[4]. Ali
foi destruída uma experiência que estava caminhando para sua realização a nível
nacional. Apesar daquele massacre, o projeto político de organização social
apresentado pela classe operária não foi abolido e continua vivo na teoria do
proletariado. Os ensinamentos da Comuna vêm perpetuando até os dias atuais como
referência na luta por um mundo novo, por uma sociedade destituída de luta de
classe. Sobre isso Marx expressa:
A
Paris dos operários de 1871, a Paris da Comuna será para sempre celebrada como
a precursora de uma sociedade nova. A memória de seus mártires viverá, como num
santuário, no âmago do coração da classe operária. Seus exterminadores, a
História já os pregou a um pelourinho eterno e todas as preces de seus padres
não bastarão para resgatá-los (MARX, 1986, p. 97).
O significado
histórico da Comuna de Paris de 1871 não ficou no passado, é parte do presente;
deve ser lembrado enquanto o objetivo da classe que a gerou não seja efetivado.
E seu objetivo continuará como um espetro a assombrar o capitalismo enquanto
este existir, até o dia em que este venha ruir pelas mãos das classes explorada
e oprimidas e finalmente, como foi no dia 18 de março de 1871, possamos acordar
em uma nova sociedade com o grito “Viva a autogestão Social” nos encontrando
definitivamente com a liberdade. Em síntese, a Comuna deixou para a humanidade
o projeto de uma nova sociedade pautada na autogestão social. A sua construção
depende única e exclusivamente da luta revolucionária da classe operária. Isso
impõe a aqueles que almejam a emancipação humana se inserir na luta e contribuir
para que o proletariado inicie o mais rápido possível a sua missão histórica.
Referências
Bibliográficas
BAKUNIN,
Mikhail. A Comuna de Paris e a Noção de Estado. In: VIANA, Nildo (org.). Escritos Revolucionários sobre a Comuna de
Paris. Rio de Janeiro: Rizoma, 2011.
DUNOIS,
Amedée. Textos e Documentos. Compilados e Comentados. In: TROTSKY, L. et al. A Comuna de Paris. Rio de Janeiro:
Laemmert, 1968.
LISSAGARAY,
Prosper-Olivier. História da Comuna de
1871. São Paulo: Ensaio, 1991.
MICHEL,
Louise. A Comuna I. Lisboa: Presença,
1971b.
______. A Comuna II. Lisboa: Presença, 1971a.
MARX,
Karl. A Comuna de Paris. In: VIANA,
Nildo (org.). Escritos Revolucionários
sobre a Comuna de Paris. Rio de Janeiro: Rizoma, 2011.
______.
A Guerra Civil na França. São Paulo:
Global, 1986.
______.
Crítica ao Programa de Gotha.
In: MARX, K. e ENGELS, F. Obras Escolhidas, vol. 2. Rui de Janeiro: Vitória,
1961.
VIANA,
Nildo (org.). Escritos Revolucionários
sobre a Comuna de Paris. Rio de Janeiro: Rizoma, 2011a.
______. O Significado Político da Comuna de Paris.
Florianópolis: Revista Em Debate, ISSN 1980-3532, jul. dez, p. 60-82, 2011b.
[1] Segundo Marx (2011, p.17) foi
integrada em sua maioria por operários ou representantes reconhecidos da classe
operária.
[2]
Para um aprofundamento sobre
as especificidades da Comuna de Paris de 1871, entre diversas publicações sobre
o assunto, sugiro a leitura das seguintes obras: A Guerra Civil da França, de Karl Marx (1986); História da Comuna de 1871, autoria de Prosper-Olivier Lissagaray
(1991); os documentos organizados por Amedée Dunois, publicados na coletânea A Comuna de Paris (1968); As obras A Comuna I e A Comuna II, de Louise
Michel (1971) e o livro Escritos
Revolucionários sobre a Comuna de Paris, coletânea organizada por Nildo
Viana (2011).
[3]
Os comunardos defendiam que a
Coluna Vêndome, assim também denominada, estátua erigida pela primeira vez em
1810 por Napoleão Bonaparte, era “um monumento de barbárie, um símbolo de força
bruta e de falsa glória, uma afirmação do militarismo, uma negação do direito
internacional, um insulto permanente dos vencedores aos vencidos” (VINOI, 1968,
pp. 74-75), isto é, uma representação da dominação exercida pela classe
dominante sobre a demais classes dominadas.
[4]
As execuções continuaram após
o dia 28 de maio de 1871. Segundo Dunois (1968, p. 52) estima-se que foram mais
de 30 mil mortos entre a população operária, 38 mil presos, incluindo mulheres
e crianças, e cerca de 28 mil enviados para cárceres das costas do oceano.
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